14 janeiro 2020

A força do rentismo


O crescimento do PIB foi aprisionado pela bolha especulativa

Wilson Luis Muller, Jornal GGN
Apesar do pibinho de 1% nos últimos anos, os bilionários estão satisfeitos. O que deixam de ganhar investindo na economia, eles ganham em dobro especulando na bolha-bolsa.
Reproduzo algumas manchetes e trechos de reportagens pinçadas das mídias a partir do segundo semestre de 2019.
“A XP e seus similares no mercado precisam inflar a bolha do mercado de ações, APESAR da retirada em massa do investidor estrangeiro da bolsa brasileira; saíram US$43 bilhões de capital estrangeiro em 2019, obrigando o BC a torrar 10% das reservas internacionais em 2019, US$37 bilhões e apesar da chocante queda da produção industrial em novembro e dezembro de 2019, um sinal claro de retrocesso, recessão e falta de vigor da economia.” (André Motta Araujo)
“Lucro das empresas com ações na Bolsa cresce 73% no 2º trimestre;  o setor com maior lucro foi o dos bancos, com ganho de R$ 22,73 bilhões.”
“No país dos juros recordistas, o que tem sustentado a Globo são as receitas financeiras. No consolidado do grupo, as receitas financeiras saltaram de R$ 943 milhões para R$ 1,06 bilhão em 2018.” (Luís Nassif)
Terceiro trimestre de 2019: … “dos quatro maiores bancos com ações na Bolsa […] na comparação com o mesmo período de 2018, […]o Banco Banco do Brasil teve lucro líquido contábil de 4,256 bilhões no período, alta de 34%.” (Nota do autor: com lucratividade em alta, o Banco do Brasil entra com prioridade na fila de privatizações).
20 maiores lucros do terceiro trimestre de 2019 de empresas que investem na bolsa: “as oito empresas que lideram o ranking são dos setores de petróleo, mineração, bancos (cinco entre os oito de maior lucro) e bebidas.”
20 maiores prejuízos do terceiro trimestre de 2019 de empresas que investem na bolsa:” a lista é encabeçada pelos setores de papel e celulose, siderurgia e metalurgia, química, energia elétrica, transportes e serviços, comércio, veículos e peças, agricultura e pesca, imobiliário, construção.”
Arrecadação federal em novembro 2019: “Os maiores saltos de arrecadação […] e Imposto de Renda de pessoas físicas, com alta de 31% no mês, é explicada em boa parte pelos resultados da bolsa de valores, que teve ampliação do número de investimentos.”
Vamos tentar dar um sentido lógico para essas informações, fazendo algumas perguntas bem elementares e dando respostas objetivas.
Por que os bancos têm lucros cada vez mais elevados numa situação em que a economia e a maioria do povo passam por uma grande crise?
Resposta: porque os bancos investem na bolsa de valores, que vem tendo altas recordes.
Porque a bolsa está subindo tanto se a economia e o povo vão mal?
Porque vários setores deixaram de aplicar na produção por causa da crise crônica. A indústria é um exemplo típico. A indústria hoje está 17,1% menor do que no período pré-golpe (IBGE, 2011). Setores do agronegócio começam a seguir o mesmo caminho dos industriais.
Por que os industriais estão deixando de investir na produção para investir na bolsa de valores?
Porque o PIB cresce  apenas 1% ao ano. Essa pequena geração de riquezas é toda apropriada pelos bilionários, que estão ficando mais ricos enquanto 99% do povo está ficando mais pobre. O povo  empobrecendo, diminui o consumo. Sem consumo não há razão para aumentar a produção. Além disso, os governos Temer e Bolsonaro retomaram o ultrapassado alinhamento submisso com os Estados Unidos, afastando importantes parceiros comerciais que compravam os produtos brasileiros. A balança comercial começa a cair, trazendo menos dólares para o país. Tem ainda a destruição ambiental promovida pelo governo Bolsonaro que também afasta compradores do mundo civilizado.
Por que a mídia empresarial faz propaganda para a bolsa?
A mídia corporativa depende da bolsa para aumentar seus lucros. Funciona como uma empresa qualquer, como um banco, não tem compromisso com jornalismo de verdade. Muitas empresas, conforme manchetes e reportagens acima reproduzidas, salvam seu lucro por causa da bolsa. Se dependessem de suas atividades operacionais normais – linha de produção –  estariam no prejuízo. A bolsa, para ser lucrativa para os bilionários, precisa ter volume de investimentos. Esse volume é trazido pela propaganda dos “garotos do mercado”, que convencem milhões a levarem as suas economias para o altar sagrado do capitalismo, onde o suor de muitos é incensado para se transformar na fumaça que leva os bilionários para uma dimensão paralela onde eles perdem contato com a realidade econômica e social do país.
(Esses milhões de pequenos investidores que são arrastados para dar volume são conhecidos no jargão dos operadores da bolsa como pica-paus. A vida desse pássaro é orientada pelo fascínio que um pedaço de madeira exerce sobre seus  sentidos, prometendo a existência de um manjar de deuses no interior de um pau oco.  Essa visão fascinante o anima a se agarrar no pau e  martelar freneticamente com seu bico. De vez em quando a sorte lhe sorri e ele encontra uma larva gorda e suculenta. Por causa desse prêmio esporádico, ele passa a vida dando marteladas em tocos secos, mesmo que na maior parte do tempo suas energias (economias) sejam gastas à toa, fazendo dele o pássaro de cabeça mais dura dentre todos que se conhece.)

Mas por que o PIB  cresce somente 1% ao ano?
Porque, apesar do pibinho de 1% nos últimos anos, os bilionários estão satisfeitos. O que deixam de ganhar investindo na economia, eles ganham em dobro especulando – com o seu dinheiro,  e também com as economias de milhões de pica-paus – na bolha-bolsa. O que acontece com o povo não é um problema deles.
Mas não prometeram crescimento de 2,5 % vários anos seguidos, desde 2016, para derrubar a Dilma?
Sim. Mas deu uns probleminhas na reforma trabalhista que não trouxe o crescimento prometido, com a reforma previdenciária também, com as privatizações e leilões também, os investidores não tem se interessado em investir no país, mas tudo pontual. Mas de agora em diante vamos crescer 2,5% ao ano, dizem eles.
Mas de novo 2,5%? De onde vem esse número?
Não façam perguntas difíceis. Alguém chuta o número e todos repetem. Quando chega nesse ponto,  alguém grita que isso é uma previsão do mercado. Pronto. É simples, tem que ter fé no deus mercado, não torcer contra, ele age por conta própria, mas sabe o que faz e o que é bom para você. Se der algum probleminha de novo, no ano que vem a gente explica.
Bem didaticamente é assim que a coisa toda funciona. A propósito de como são elaboradas – não tão cientificamente – as previsões para o crescimento do PIB, ver meu artigo “As previsões de crescimento do PIB são uma farsa”.
Os pica-paus tem que torcer para que os de cima continuem ganhando bilhões para que a bolsa não quebre e não leve as suas economias junto; talvez com sorte caiam para baixo algumas larvas – ops! migalhas. Assim, graças à bolsa, a ideologia de que todos podem ficar ricos se transmuta na máxima de que os ricos precisam ficar bilionários para que os de baixo, arrastados para dentro da bolha, não percam tudo. Melhor dos mundos. Pros de cima, evidentemente, pois sequer precisam se preocupar com a propaganda do fabuloso negócio.
Em síntese, a bolsa sobe impulsionada com lucros que não guardam relação com a economia real. E nesse movimento de lucros fictícios, os garotos do mercado acabam arrastando para a vida especulativa milhões de pequenos investidores, os pica-paus, convencidos esses de que não há negócio melhor na vida.
Apesar da economia real estar estagnada, a arrecadação federal consegue manter níveis compatíveis de arrecadação, graças ao imposto incidente sobre os lucros obtidos na bolsa, retidos e recolhidos imediatamente aos cofres públicos, sem possibilidade de serem sonegados ou terem seu recolhimento postergado.
Combinado então que desse jeito fica bom para todo mundo.
Numa rápida análise, percebe-se que o único dinheiro aplicado na bolsa, originário da atividade produtiva, são as economias aplicadas pelos milhões de assalariados e pequenos e médios empresários. Os demais, os grandes investidores, estão reaplicando os lucros que obtiveram no giro do dinheiro fictício. Como o dinheiro não se reproduz por geração espontânea, apenas por ser reaplicado sucessivamente na bolsa, é evidente que parcela expressiva desses novos e sucessivos lucros é uma transferência das economias do pessoal da base da bolha. Claro que uma parte dos ganhos também resulta de decisões de alguns mais espertos e poderosos, considerados os bem informados,  residentes quase todos em lugar outro que não na pátria mãe da bolsa gentil, decisões essas que eles tomam de  que a vez de subir na bolsa é da empresa A para baixar o valor da empresa B.
Assim, ficam todos presos à bolha da bolsa, todos dependendo de que ela continue subindo indefinidamente, sem que nada de novo seja produzido nem inventado, que a indústria continue andando na marcha ré, exemplo que está sendo seguido de perto pelo agronegócio, setor que ainda há pouco apresentava alguma pujança. Sabe-se lá até quando esse setor resistirá até passar a adorar em primeiro lugar a bolsa, para depois lentamente abandonar de vez a atividade produtiva.
O assunto é tão sério, e tão inatacável, que em breve será proibido fazer qualquer crítica à bolha especulativa. Pois é grande o risco de muitos dos impressionados pelo lucro fácil da bolsa se darem conta de que não é possível gerar riqueza a partir de algo imaterial. Ao se espalhar essa impressão, passa a ser grande a chance da bolha explodir, levando a quebradeira para todos os rincões. Evidentemente, antes que a quebra aconteça, os que controlam a bolha movimentarão seus bilhões – bora lugar seguro!  -, de modo a ficar acertado que apenas os milhões de pequenos e médios pica-paus sejam os únicos a perder suas economias.
Os bilionários terão recebido informações privilegiadas para executarem seu prudente movimento em momento propício. É para isso que se paga comissões generosas para as xispê das reuniões secretas com procuradores e ministros do supremo, quiçá com outras renomadas autoridades monetárias.
Enfim, é esse novelo mágico, luminoso e nebuloso a um só tempo, que projeta os “garotos do mercado” a serem também eles novos bilionários, comendo apenas pelas beiradas como convém aos sócios menores do grande empreendimento da geração artificial de riqueza.
Como toda bolha, é certo que um dia irá estourar. Quando isso irá ocorrer? Os pica-paus receberão notícias a respeito disso depois que os bilionários, talvez com espaço de algumas horas de diferença. Tempo suficiente, em todo caso, para uns se darem bem e outros perderem tudo.
Wilson Luiz Müller – Membro do Coletivo Auditores Fiscais pela Democracia (AFD)
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