Democracia
em Vertigem, um filme que nunca termina
Xico Sá, portal Vermelho
Filme
de Petra Costa reabre e universaliza a mais acirrada discussão que tivemos na
taba Tupi de 2016 para cá: a queda da ex-presidente Dilma Rousseff foi golpe ou
não foi golpe?
Os filmes precisam ter um fim, subir
os créditos. Nas ficções, a imaginação cuida de continuá-los nas nossas cabeças
– Taxi
Driver (1976) segue rodando ad eternum, talvez agora na pele de um
neurótico “empreendedor” brasileiro motorista de Uber e bartender free-lancer.
Nos
documentários, a vida real ou o jornalismo se encarregam de dar sequência. Democracia em Vertigem, por exemplo,
não acabaria com letreiro informando que o ex-ministro Sergio Moro, o mesmo que
mandou prender o Lula durante a corrida presidencial de 2018, tomou posse na
condição de ministro da Justiça do governo Jair Bolsonaro. Seguiria com as
memórias do subsolo reveladas pelo The Intercept Brasil em parceria
com veículos como este El País. O uso de métodos explicitamente corruptos em
nome do combate à corrupção faria do ex-juiz e dos procuradores da Lava Jato
personagens ainda mais relevantes na trama.
É
só um exercício de montagem da história pra gente falar duas ou três coisas
sobre o filme de Petra Costa indicado ao Oscar 2020. A própria diretora revelou
que, se soubesse, teria esperado pelos segredos recolhidos por Glenn Greenwald
e equipe. Seria importante para termos um documento audiovisual de um capítulo
sequestrado da história pela televisão brasileira, mas em nada enfraquece a
obra. Ao contrário. Praticamente lança a demanda por uma parte II, a missão Vaza
Jato.
Uma
terceira etapa também já se sustenta como roteiro: a deterioração da democracia
na era bolsonarista, com ataques à imprensa, aos conselhos ambientais, sociais,
surtos de censura às artes, cultura e ciência, desmonte de fundações como a
Casa de Rui Barbosa, no Rio, etc.
O
Brasil é uma mina, uma Serra Pelada para documentaristas de todas as visões e
tendências. Petra sabe disso e a partir de um léxico familiar destrinchou em
imagens a turbulência política mais recente dos tristes trópicos. São várias
camadas dramáticas na escolha parcial – não há filme imparcial desde a primeira
sombra projetada na parede pelos irmãos Lumière – e o conflito caseiro entre a
empreiteira do avô e a utopia esquerdista revolucionária dos pais é uma tomada
afetiva capaz de justificar qualquer premiação.
A
construtora é a Andrade Gutierrez, de origem mineira, protagonista ou
coadjuvante em escândalos de superfaturamento em governos militares ou civis de
todas as cores ideológicas. Os governantes mudam, os empreiteiros estarão
sempre nos palácios ou nos castelos kafkianos, como espiamos na mesma lente da
diretora.
O
conflito caseiro ganha outra camada histórica quando uma certa pureza da utopia
dos pais é baldeada com a lama da “real politik” brasileira e o envolvimento do
PT em escândalos como o do Mensalão. Acrescenta-se a este ponto a autocrítica
do “cavaleiro solitário” Gilberto de Carvalho, ministro-chefe da
Secretaria-Geral da Presidência nos governos petistas. Não uma autocrítica tão
profunda assim, como recomendaria a patente do velho marxismo-leninismo, mas
raríssima.
Duas
ou três coisas que eu sei ou vi no filme dela, como diria meu Jean-Luc Godard. Democracia em Vertigem reabre e
universaliza a mais acirrada discussão que tivemos na taba Tupi de 2016 para
cá: a queda da ex-presidente Dilma Rousseff foi golpe ou não foi golpe? Sei que
muita gente não aguenta mais esse drama hamletiano e preferia ficar, ad infinitum, com a versão oficial do
impeachment. É um roteiro bem mais cômodo. O poder da imagem, porém, projeta
inquietações e fantasmas sobre o telão das nossas crenças.
Em
sendo golpe, de que tipo o classificaríamos: inteiramente parlamentar (“tem que
manter isso aí”, entra a voz do Temer sobre a mesada ao Eduardo Cunha);
jurídico-parlamentar (“com Supremo com tudo”, diz em off o senador Romero Jucá) ou
midiático-jurídico-parlamentar (corta para uma emissora de TV abrindo um
programa de futebol direto da “manifestação família” da avenida Paulista ou de
Copacabana).
Dois
ou três dedinhos de prosa mineira, com direito a uma pinga de Januária… À
sombra da indicação ao Oscar, até a aliança Bolsodória foi restaurada no
escurinho do cinema. O PSDB do governador paulista e o staff do presidente ironizaram o
documentário como obra de ficção. Quem é mestre em fake news tem autoridade moral
para a crítica?
O
general Augusto Heleno, chefe do Gabinete de Segurança Institucional,
acrescentou terror e comédia às características do filme. Medo, mas também faz
sentido: uma das cenas mais terríveis da noite da votação do processo de impeachment
foi marcada pela homenagem ao torturador Carlos Alberto Brilhante Ustra –“o
pavor de Dilma Rousseff”, segundo o então deputado federal e hoje presidente da
República.
Flash back. O coronel Ustra, só para aterrorizar um pouco a memória,
tinha entre os seus requintes o uso de ratos nas vaginas das presas políticas.
O traço de comédia do documentário, caro general, está nas dedicatórias ao
estilo Maguila (o boxeador) dos parlamentares durante a mesma votação. Dedico
esse voto à minha esposa, ao meu papagaio, ao meu cachorro Rex, etc., etc.
Democracia em Vertigem é forte porque cinema. O poder da imagem fechando nas
mãozinhas do então vice Temer na rampa do Planalto ao lado de Lula, Dilma e
Marisa Letícia. As mãozinhas também representam uma trama de marionetes, cada
dedo é um personagem da traição ou do golpe -escolha você mesmo como nomear as
coisas. Uma marmota, munganga com digitais, um mamulengo dos infernos.
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