22 maio 2020

A crônica resiste


Socorro, Rubem Braga!

Penso que gostaria de morar nele. Será que você viria comigo?

Tati Bernardi, Folha de S. Paulo


Eu sou cronista do maior jornal do Brasil e, no entanto, me sinto impossibilitada de escrever uma crônica. Quando abro qualquer publicação, para ler colunas de outros escritores, percebo que eles também estão completamente entregues a artigos de opinião sobre política e saúde.
Ninguém aguenta mais o verme e o vírus, mas imagina eu usar este espaço pra falar das árvores, de um amor da adolescência ou de uma tarde inesquecível em que nada aconteceu? Você, leitor, sentiria alívio, mataria a saudade do que deveria ser, em essência, uma crônica, ou escreveria ao jornal me chamando de alienada? Mil mortos por dia, e eu falando sobre brincar com tatu-bolinha no jardim da minha avó?
Nas minhas reuniões de roteiro (seja para o cinema, que por ora nem sequer respira artificialmente; seja para a televisão, que por ora tenta se reinventar a cada uma das mil videoconferências das quais participo), nos perguntamos se as pessoas querem assistir ao mundo de antes, ao de agora ou ao do futuro. E eu me arriscaria a escrever sobre qualquer um desses, se eu entendesse, minimamente, o que são eles.
Mas voltemos à crônica. Recorro ao meu livro “200 Crônicas Escolhidas”, do Rubem Braga, e penso que gostaria de morar nele. Será que você viria comigo? A primeira vez que ele viu o mar, e o seu amigo explicando a diferença entre mar, maré e marola. Depois, andar sob a madrugada escura. Cachorros que esperam na porta. De longe se escuta uma música. O menino rico tem inveja do menino sujo que canta na rua.
E se um sol iluminasse aquela noite, mas sem corrompê-la? Os soldados que não podem olhar estrelas porque lembram dos generais. Senhoras bastante desquitadas. O mundo que era puro, mas triste e sem fim. Em “Almoço Mineiro”, leio que Poços de Caldas é uma cidade bonita. Então lembro da cama com uma toalha dobrada em forma de cisne, num hotel muito simples, e da gente rindo e gostando de tudo.
Eu estava ansiosa, à espera da minha fala em uma feira de literatura, e resolvemos transar mesmo não sendo o dia certo da tabelinha da fertilidade. Pois o dia errado me trouxe a Ritinha. Hoje, pra variar, acordei com a minha filha me encarando, seus olhos enormes querendo me arrancar o sono. Pensei que, durante esse confinamento, tenho em minha filha um universo inteiro.
Agora visito Paulo Mendes Campos. Começo pelo seu texto mais famoso, “O Amor Acaba”: “[…] acaba no desenlace das mãos no cinema, como tentáculos saciados […] Como se as mãos soubessem antes que o amor tinha acabado”. Logo recordo de pés na bunda memoráveis. O mais sofrido foi em uma lanchonete chamada Bolados Sucos. Ele falando que já tinha “dito tudo por email”. Eu declarando que o amaria ainda por muito tempo.
E foi o que fiz. Demorou cinco anos pra passar. E por causa dessa dor eu lancei meu primeiro livro, aluguei meu primeiro apartamento e viajei sozinha para Paris (que erro!).
Lembro de outro fim terrível. Ele imóvel, distante, fumando, e eu escavando o seu peito: “Não tem nada aí? Nada?”. Caí de cama e minha mãe não se conformava: “Sua vida só está começando, pra que sofrer assim?”. Que saudade da minha mãe (que não vejo há 67 dias).
Da minha vida que estava só começando (ou apenas da minha vida). De sofrer tanto por coisas boas. Das lanchonetes ridículas, das viagens erradas, de lançar livros e ver pessoas (não aguento mais fazer live). Saudade demais do mundo. Socorro, Rubem, Paulo! Vinicius de Moraes, por favor, me diga que eu não vou bater pino! Eu acordo tarde e gosto demais de brigadeiro.

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