30 maio 2020

Liberdade às avessas

A maior ‘Fake News’
Tahuan Fernandes*

“Liberdade é uma palavra que o sonho humano alimenta,
não há ninguém que explique e ninguém que não entenda.”
Cecília Meireles


Todo o mundo está acompanhando com doses cavalares de espanto o que acontece no Brasil de maio de 2020. Os brasileiros, a maioria de dentro de suas casas, assistem o anúncio de milhares de vítimas da pandemia da Covid19, enquanto o governo finge que ela não existe. Uma espantosa reunião ministerial recentemente revelada demonstra o nível de confusão a que estamos submetidos: ameaças ao STF, politização da PF, cobranças constrangedoras de defesa do governo, mentiras ditas sem nenhum embasamento, subestimação da ciência...
Neste cenário, já surgiram diversos argumentos surreais que mantém Bolsonaro com seus 30% de aprovação. Estes são, ainda que débeis, capazes de mantê-lo no poder, com capacidade de dar chilique em rede nacional com status de presidente. Mas um deles, uma grande mentira, é o maior de todos, ao ver deste modesto escritor.
Me espanta vivenciar, neste século, ainda o argumento de ameaça de algo ruim para justificar medidas autoritárias. Mas é justamente o que está em curso no Brasil...
Trata-se da fala preocupante de Bolsonaro na reunião citada: “... os caras querem é a nossa hemorroida, é a nossa liberdade” e completa com o seguinte raciocínio “Como é fácil impor uma ditadura no Brasil. ”;“(...) Por isso eu quero que o povo se arme, é a garantia que não vai ter uma ditadura. ” A inquietante sensação de golpe afligiu todos os olhares atentos nesse momento. Afinal, é uma clara demonstração política de incentivo à violência popular por parte do chefe de Estado. Mas, para além disso, destaca um pensamento principal que poucos se atentam.
É claro que Bolsonaro não se refere a liberdade de ninguém, a não ser de sua família, amigos e apoiadores. Mas muita gente desavisada se deixa levar pelo raciocínio “simples”, de que obviamente se houvesse uma arma na sua mão, ninguém poderia pará-lo, e nem acontecer alguma injustiça contra si ou contra sua família. Raciocínio individual, versus um problema coletivo, erro natural sobre a percepção das coisas.
Afinal de contas, os armados pela instauração de uma normatização do armamento amplo e irrestrito no Brasil seria um recorte exato da população: os mais ricos e parte da classe média.Ricos de maneira legal e ilegal, de empresários a milicianos. Além disso, estudos norte-americanos afirmam que “o roubo a residências tende a aumentar em bairros com predomínio de armas nas casas” (Cook e Ludwig, 2002.), sugerindo o que muita gente especula, que as armas atraem assaltantes e podem aumentar a insegurança individual.
A verdade é que nenhuma arma se mostrou tão forte no mundo inteiro, na geração de grandes nações independentes e evoluídas, quanto a educação. A universalização do pensamento, da crítica e da capacitação das pessoas, não só melhora a igualdade material e social, como em todos os estudos pelo mundo, reduziu a violência. Um levantamento feito pelo Ipea em 2014 apon­ta que há uma ten­dên­cia de que, pa­ra ca­da 1% a mais de jo­vens nas es­co­las, há uma di­mi­nu­i­ção de 2% na ta­xa mu­ni­ci­pal de as­sas­si­na­tos.
A marca, nos países asiáticos e europeus que investiram fortemente em educação, é a redução histórica na violência e na desigualdade. E esse é o verdadeiro significado de liberdade: ter numa nação um povo capaz de criticar, se organizar e produzir uma economia avançada. Liberdade de comprar armas significa apenas o livre comércio para o enriquecimento de alguns empresários, e mais violência para muitos. Já a liberdade da consciência, oferece muito mais que uma “prevenção” de uma ditadura explícita, mas principalmente a possibilidade de um mundo novo, sem as opressões que vivemos implicitamente, acumuladas por séculos de desigualdade.
Em contrapartida ao que seria necessário para a liberdade de nosso povo, o ministro da educação abre mão de sua institucionalidade e se demonstra apenas um militante bolsonarista. Um ministro que, ao invés de falar em reunião com os outros ministros sobre as dificuldades de ensino no Brasil devido à pandemia, ameaça ministros do STF. Não existe, portanto, iniciativa para colocar a educação do país em outro patamar do presente. O projeto “Future-se”, enviado para o congresso nacional em plena pandemia, é apenas uma pauta bomba que tenta passar despercebida, e sugere a flexibilização do status público das universidades. Um completo desrespeito ao debate contraditório, que é uma premissa para a liberdade.
Bolsonaro fala em verdade, mas escancaradamente divulga a mentira – propaga Fake News. É preciso também escancarar o desrespeito a esta palavra tão bonita: “Liberdade”. Um país livre com Bolsonaro é a maior Fake News de todas.

*Tahuan Fernandes é estudante de Engenharia Biomédica na UFPE, já foi presidente da UEP-União dos Estudantes de Pernambuco e diretor da UNE-União Nacional dos Estudantes. Conselheiro da Juventude no Recife, além de pai de Helenira.

[Ilustração: Pieter Cornelis Mondiaan]

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