05 maio 2020

Aprendizagem em tempo de pandemia


A educação como essência do SER
Renata Jatobá*

Ao tratarmos da educação em tempos de pandemia e, mais especificamente, do desenvolvimento do processo de alfabetização das crianças na idade certa, colocamos-nos diante de muitos questionamentos e dúvidas, em relação ao destino da aprendizagem dessas crianças no ano de 2020.
Em geral, a sociedade vem demonstrando algumas preocupações, que classifico-as em dois tipos, a saber: a) as associadas à herança negativa que pode provocar a ausência do ensino sistemático escolar; b) as relacionadas à possibilidade da não conclusão do ano letivo e os atrasos nos estudos para o término da educação básica.  
Salientamos que esses pensamentos estão prioritariamente focados na formação do ter, que não condiz mais com os novos tempos que a atualidade social vem exigindo, como processo de construção de uma nova normalidade coletiva.
Nossa reflexão está voltada para esse universo de angústias dos diferentes agentes sociais. Primeiro, pelo fato de a essa fase do ensino ser exigido o êxito necessário das nossas crianças por meio de práticas escolares contextualizadas, com o objetivo final de construir a autonomia na leitura e na escrita; segundo, pelos dados que vemos ao longo desses anos sobre alfabetização no Brasil, ou seja, as estatísticas desastrosas que apontam a estagnação do crescimento desse aprendizado no país.
Pensar em Covid-19 e no curso do ano letivo de 2020, permite-nos ponderar que os impactos educacionais tendem a ser negativos para o ensino da Leitura e da Escrita, ao mesmo tempo em que se delineia um novo cenário em que essas crianças, “possivelmente prejudicadas”, estão tendo uma oportunidade única, que vem para promover a igualdade educacional na concepção de ensino, que é a construção do pensamento coletivo dos professores, dos pais e dos educadores sobre a importância da educação para a sociedade e para as nossas crianças.
Portanto, nesse momento, em que as sociedades refletem e planejam alternativas para a superação do problema e para a continuidade da vida humana, nada é mais justo do que pensar além das convenções dos períodos ou calendário anual letivo, nessa atual incerteza. O que podemos realizar, neste momento, é pensar em estratégias de organizações possíveis, ou seja, desenvolver a criatividade das crianças, de tal forma que possa agregá-la na conjuntura do processo educativo futuro.
Para isso, permitam-se adentrar em duas grandes ideias: a primeira, que trata da reflexão sobre as novas relações educacionais para a família, a escola e a sociedade; a segunda, que trata de como a sociedade e seus agentes são fundamentais para a transformação de uma nova normalidade planetária, com os impactos de uma verdadeira alfabetização ecológica. Essa última como a capacidade de ler, descrever e interpretar o ambiente que o cerca, reconhecendo aspectos ecológicos para solucionar problemas no cotidiano, resgatada aqui a partir da obra de Fritjof Capra, um físico, teórico e escritor que desenvolve o trabalho na promoção da educação ecológica. Assim, a visão sistêmica é sobre o quanto é indissociável o todo (coletivo) e suas partes (pequenos grupos) para o funcionamento dos organismos. Essas reflexões são necessárias e pertinentes para o momento atual de pandemia no qual vivemos.
Diante de tudo isso surgem novos questionamentos motivadores para a educação: Qual será o resultado da pandemia para o desenvolvimento da criança? Quais possibilidades de elaboração serão construtoras da sistematização do ensino da linguagem?
Para isso, precisamos estar atentos aos dados em que estas crianças estão inseridas, não como elementos preponderantes, mas como indicadores de reflexão e proposição de adoção de políticas públicas voltadas à garantia de direitos sociais básicos. Infelizmente, no Brasil, conforme o Censo 2010, pelo menos 6,9 milhões de famílias estão sem casa para morar. No Recife, o IBGE, panorama das cidades, aponta 69,2% de domicílios com esgotamento sanitário adequado e 30,8% da população não possuem um lar estruturado, que ajude no ambiente para as atividade educacionais. Mas, ainda é possível, dentro desta realidade, refletirmos possibilidades para o desenvolvimento da criatividade e das potencialidades da criança.
Deste modo, a reflexão ora apresentada está para a educação enquanto essência do ser e, neste sentido, o resultado pode apontar para um mundo que dará respostas aos nossos anseios, mesmo com os desafios e respostas que não se apresentem na forma da lógica atual.
A construção coletiva dessas alternativas de superação visa ao equilíbrio para as nossas ações, ao redimensionamento do trabalho e a um novo desenho de formação do ser crítico, leitor e ativo, face à conjuntura social almejada. Assim, acreditamos que para essa formação do ser, o mundo poderá se apresentar menos competitivo e mais humanizado; menos frenético e mais construtivo; menos doente e mais complacente; menos arriscado e mais planejado; menos exigido e mais construído; menos enquadrado e mais diversificado; menos estagnado e mais evolutivo e criativo.
Nesta perspectiva, criatividade é um dos elementos essenciais para lidarmos com o momento da educação atual. Será necessário repensar o exercício docente, ou seja, não sermos os professores de antes e propor meios para superar e ajustar o que não se pode remediar.
O fluxo do calendário letivo, na vida das crianças do primeiro ano do ensino fundamental, não pode ser mais importante do que a própria formação humana desse estudante. Portanto, sabemos que a “Educação é libertadora”, como dizia Paulo Freire e, nesse conceito, podemos ajudar a transformar a realidade dos lares com o cuidado e a compaixão.
Percebe-se um movimento socioeducativo em que se têm envidado todos os esforços para a organização de ações voltadas à formação do leitor, com práticas de letramento, planejamento para o acolhimento ao retorno das crianças para as escolas, configurando-se uma ação conjunta e, ao mesmo tempo, considerando as especificidades de cada unidade educacional e realidade, na tentativa de sanar essa situação nunca antes vivida.
Para todas as crises ou momentos da educação, a preocupação de maior recorrência das escolas sempre foi desenvolver uma interlocução eficaz com as famílias. Agora, se agrava a isto, o desenvolvimento da melhor forma de se comunicar com as crianças nesse período de pandemia. Percebe-se, atualmente, um fluxo contrário ao anteriormente instituído. Sempre foi muito comum pensar em estratégias para inserir a família na escola e hoje, vê-se uma ação educativa que tem reafirmado a parceria escola-família, salvaguardando-se as competências específicas de cada instituição (família e escola).
Esse é um momento importante para a visão educacional transformadora. O papel da escola sempre será de acolhimento, fomento à leitura, socialização de livros, sistematizações de conteúdos, possibilidades de práticas criativas e de vivências com a natureza. O papel da família, juntamente com a sociedade e o Estado, sempre será, conforme Constituição Federal de 1988 (em seu artigo 227), o de assegurar, entre outros aspectos, o direito à educação.
Nessa conjuntura e em se tratando de princípios didáticos, o fato é promover o desenvolvimento da criança junto com o apoio da família, considerando os aspectos da observação da natureza. Refletir sobre essa questão é algo criador e gerador de todas as grandes formulações e inovações do mundo que foram originárias por tantas pessoas, como Leonardo da Vinci, no século XV, para criar todas as grandes descobertas da humanidade.
Podemos realizar a tentativa de tratar dos conteúdos por meio de atividades remotas ou atividades presenciais e assim, viabilizar possibilidades. Porém, a proposição de atividades de vivência com a natureza, com o ambiente e a construção de material próprio e possíveis existentes em seus lares, poderão proporcionar, nesse momento, possibilidade de igualdade que defendemos, na perspectiva da construção mais significativa do conhecimento.
O contexto atual aponta para um modelo híbrido de educação coletiva, que possui diferentes formas, com empenho da coletividade, que envolve família e escola. Então, os professores no trabalho remoto, com inúmeras possibilidades de trabalho para as crianças, como: teleaula em televisão aberta, atividades físicas enviadas para as famílias, atividades on-line, proposição de vivências com a família, elaboração e criação de jogos com sucata, conversas para a realização da leitura de mundo e da palavra, entre outras. Tudo isso é importante para esse momento único e para a fase de alfabetização propriamente dita. Portanto, nesse trabalho do “fica em casa”, os professores tornam-se, cada vez mais, protagonistas para o exercício de elaboração autoral de atividades criativas e, até emotivas, tendo como elementos a realidade a qual estão inseridos, nesse contexto de pandemia, além de pensar em momentos de valoração à vida, aos cuidados com o outro (empatia) e consigo mesmos. A escola e a sociedade são conjunturas máximas para a construção da vida humanizada e equilibrada da nossa essência, que nada mais é do que a busca do ensino para o amor.
Fomos acometidos por um vírus letal que nos impediu de seguir na forma que acreditávamos ser anteriormente como o melhor modelo educacional. O Conselho Nacional de Educação apresentou a proposta de parecer sobre a reorganização dos calendários escolares e a realização de atividades pedagógicas não presenciais durante o período de pandemia da COVID-19, que colaboram com possibilidades de orientações para tentar esclarecer os questionamentos atuais da área.
Cabe a cada Sistema de Ensino traçar as possibilidades para a realização de atividades e a sua real efetivação. Para tanto, a ação do poder público é primordial e deve ser propositiva de forma mais ágil, considerando todos os contextos. 
A gestão do ensino da leitura e da escrita precisa ser realizada também por meio de ações planejadas e de nivelamento futuro, intensificando-se no ano de 2021. Isso é um fato que poderá colaborar com as construções e sistematizações das crianças em termos de desenvolvimento da aprendizagem.
Deste modo,a sociedade possui osagentes fundamentais para a transformação de uma nova normalidade planetária. Muitos se questionam sobre uma normalidade. O que na verdade queremos é a participação de todos os pais, familiares, policiais, profissionais da limpeza em geral, professores, artistas, médicos, profissionais da saúde e da educação, de um Sistema Único de Saúde – SUS fortalecido,  cientistas e políticos, para cocriarem estes “novos seres” e superarem o medo que domina essa sociedade atual, mas que também é momento primordial para nos reinventarmos, não só como profissionais, mas, principalmente, como cidadãs e cidadãos do mundo.
Para concluir, compartilho uma das minhas construções nesse período de COVID-19. Trata-se de um poema em que apresento esta possibilidade criativa e convido a todos para reflexão.
O que não tem explicação, só há compaixão
Vamos ouvir a voz do coração para buscar a explicação de tudo que acontece nessa vida!
O que estamos vivendo?
Será o fim dos nossos tempos?
A Terra vai parar de girar por que o homem não soube herdar?
E se a Terra vai parar de girar, por que essa vida tem que acabar?
Não sabemos os segredos da vida.
Só sabemos que a gratidão e o amor ao próximo é comunhão na compaixão.
Por que queremos um mundo melhor?
Para ter uma vida maior!
Porque Deus sabe de tudo e já tentou, tentou... unir todo esse mundo.

Agora ou muda ou acaba
Porque sem a vida amada
Não podemos ter nada.

A sociedade do ter precisa crescer e mudar para o ser
Ser igual, ser melhor, ser amor
Sem isso, não seremos um novo planeta
E a espécie humana, será exterminada pela própria raça humana.

Para onde vamos? O que queremos?  O que podemos? O que precisamos ser?
Qual será o novo normal social?
Será que a fome será igual?
Não quero acreditar nesse problema
Porque só a compaixão pode acabar com a doença.

Somos um mundo, somos um coletivo, e pela Luz Divina seremos mais amigos
Somos um mundo, somos um coletivo, e pela força humana não teremos mais conflitos

A luta é para todos e, na verdade, o mundo é de todos...
Se tenho outra história
Vou ajudar quem ainda não tem uma vitória...

Assim vamos transformar
E nesse mundo habitar
Para viver a vida na força do amar.

[Ilustração: Joan Miró]

*Doutora em Educação pela UFPE e Universidade de Lyon 2/França.

Fique sabendo https://bit.ly/2Yt4W6l

5 comentários:

Unknown disse...

Excelente texto que levanta proposições e aponta para um momento de repensar modelos e práticas sociais educacionais.

Unknown disse...

Excelente texto! Nossa educação tem que ser voltada para o ser realmente, nossas crianças estam muito fragilizadas precisando da educação da afetividade!

ROSÂNGELA VELOSO ALVES DA SILVA disse...

Texto maravilhoso Renata. A leitura me fez viajar...não pra tão longe por mais que profundo seja cada palavra dita, cada parágrafo percorrido, por mais real e impactante que o texto nos remete a refletir através das entre linhas...Viajar primeiramente para o interior do meu interior. Onde se faz necessário esvaziar a "bagagem" do "achismo" e do medo. E perceber que precisamos ser otimistas (mesmo que as circunstâncias nesse momento pareçam impossíveis). Que precisamos nos encher de esperança. Mas, acima de tudo, tentar. Não desistir de ninguén. Ao mesmo tempo "viajei" lá pra escola. Lembrando de cada criança e suas famílias, seus lares, suas condições sociais, econômicas e também emocionais...Precisamos reinventar um jeito tecnológico de vivenciar práticas pedagógicas através das ferramentas que a criança e a família tem acesso. Sei que não será fácil, mas precisamos tentar e mesmo em isolamento social estarmos juntos!

Unknown disse...

Obrigada por tantas verdades e várias reflexões.

Unknown disse...

Renata, quero parabenizar por este trabalho aqui publicado,o mesmo refleti a nossa realidade pessoal e profissional.
Por causa dessa pandemia finalmente nós educadores e outros seguimentos vamos ter que repensar a educação...principalmente a escola, repensar como sistematizar o conhecimento com ajuda e parceria de terceiros atores;Reinventar estrategias de ensino aprendizagem.
Amei o poema ...espero não perder mais nenhuma de suas publicações.