Paulo Guedes, coautor do desastre
São muitas as contribuições do ministério da Economia
ao rebaixamento do Brasil. Não só na área econômica doméstica, mas também –
aspecto menos notado – na área internacional.
Paulo Nogueira
Batista Jr, Jornal GGN
O presidente Bolsonaro
sofre rejeição e críticas crescentes. Curiosamente, a área econômica do seu
governo nem tanto. Pode até escapar de um eventual naufrágio. Para alguns
setores influentes (nem preciso dizer quem são), tudo se passa como se o
ministro da Economia e sua equipe estivessem em uma esfera à parte e
precisassem ser preservados de alguma maneira. Mas é uma ginástica e tanto.
Bolsonaro e Guedes são dois lados da mesma moeda.
A
fragilidade da tentativa de separá-los salta aos olhos. Bolsonaro vem
caprichando no esforço de desorganizar e desestabilizar o país, não há dúvida.
Poucos se equiparam ao presidente em matéria de talento destrutivo. Como
ignorar, entretanto, que ele conta com a sincera colaboração da sua equipe
econômica? São muitas as contribuições do ministério da Economia ao
rebaixamento do Brasil. Não só na área econômica doméstica, mas também –
aspecto menos notado – na área internacional. Pretendo tratar neste texto dos
dois aspectos, mas principalmente do segundo, que tem recebido pouca atenção.
Antes de prosseguir, quero deixar claro que o
que me move a tratar criticamente desse tema não é nenhuma animosidade pessoal
contra o ministro e sua equipe. De forma alguma. Nem conheço a grande maioria
deles. Mas, convenhamos: não é por acaso que Guedes se tornou ministro da
Economia de Bolsonaro. As afinidades são visíveis. Os dois são extremistas por
vocação e trajetória. E o que temos em Brasília hoje é nada mais nada menos do
que o casamento do extremismo político com o extremismo econômico.
O radicalismo do presidente é notório. O do
ministro da Economia talvez seja um pouco menos conhecido, mas tem raízes
antigas. Paulo Guedes é um adepto da escola de Chicago, onde estudou na década
de 1970. Essa escola é a vertente radical da economia ortodoxa. Os traços
centrais da ortodoxia aparecem ali magnificados e exacerbados. A começar pela
propensão a superestimar, de maneira dogmática, o papel das forças de mercado e
do setor privado. E a subestimar, em contrapartida, a necessidade que têm as
economias modernas de um Estado atuante no campo econômico. Problemas centrais
como distribuição de renda são negligenciados ou tratados de forma
insuficiente. A questão nacional é ignorada ou vista como mero anacronismo.
É o chamado “fundamentalismo de mercado”,
vício que leva economistas supostamente científicos a defender com fervor
religioso teses no mínimo discutíveis, às vezes claramente falsas, sobre o que
fazer ou não fazer na condução das políticas públicas. Já deveríamos saber, a
esta altura, que a economia é uma ciência inexata, que se presta mal à defesa
rígida e fervorosa de propostas específica. Mas vá tentar, leitor, convencer os
seguidores dessa seita de que ceticismo e distanciamento críticos são sempre
necessários para lidar com temas econômicos – temas que são sempre políticos e
sociais ao mesmo tempo. A ideologia, como dizia Maria da Conceição Tavares, é
uma plataforma precária.
Chicago em Brasília
O espírito crítico foi para o espaço. No
Brasil, os xiitas da economia se uniram aos xiitas da política. E ficamos então
submetidos, desde 2019, à aplicação de certo tipo de teoria econômica. Já tive
ocasião de escrever a esse respeito em artigos publicados na minha coluna na
revista Carta Capital (elas podem
ser encontradas na minha página na internet: www.nogueirabatista.com.br). A
ideia central de Guedes e cia era submeter a economia brasileira a reformas
ditas estruturais, a começar pela da Previdência, acelerando e radicalizando o
que vinha sendo feito no governo Temer. O objetivo era – e ainda é – reduzir o
tamanho do Estado, via mudanças constitucionais e outras medidas, privatizar o
que fosse possível – inclusive as estatais estratégicas – e tentar reduzir o
déficit fiscal rapidamente, sem levar na devida conta os efeitos desse
ajustamento sobre a economia, o emprego e a distribuição da renda.
Um
ajustamento regressivo, em suma. Os resultados foram pífios. Como se podia
prever, não se confirmou a promessa de que o “choque de confiança” provocado
por políticas radicais traria uma recuperação econômica liderada pelo setor
privado. A economia continuou se arrastando, crescendo pouco ou nada em termos
de PIB per capita. Antes da chegada do novo coronavírus, a tendência para o
nível de atividade em 2020 era, na melhor das hipóteses, mais um voo de
galinha. Guedes perdeu credibilidade quando garantiu, repetidamente e sem a
mínima base, que a economia brasileira estava “decolando”.
Veio
então a pandemia e aí foi um verdadeiro deus nos acuda. A inadequação da equipe
econômica aos desafios de uma crise dessa magnitude ficou totalmente
escancarada. Não sei se o leitor se recorda, mas houve um momento em que a
mensagem que se tentou passar era de que a melhor “vacina” contra o vírus era,
no plano econômico, a continuação das reformas estruturais! O suprassumo do
ridículo nacional.
A participação do Estado
na economia, sempre necessária em alguma medida, se torna urgente e
indispensável em momentos de crise aguda. Prisioneira de dogmatismos e
preconceitos, Guedes e sua equipe resistiram ao óbvio e demoraram a reagir.
Quando o fizeram, as medidas foram incompletas, mal formuladas ou implementadas
sem convicção. Resultados: a economia mergulhou em recessão profunda, empresas
brasileiras estão sendo destruídas, o desemprego cresceu de forma alarmante, a
renda nacional se concentrou e aumentou a pobreza. O FMI, por exemplo, prevê
agora queda de 9,1% no PIB brasileiro em 2020. Uma recessão sem precedentes na
história das contas nacionais brasileiras.
Para
ser justo, é preciso dizer que, nas circunstâncias, uma recessão era inevitável
e que qualquer ministro da Economia governo teria enorme dificuldade de
enfrentar o desafio. Não se pode tampouco botar toda a culpa pelo que vem
ocorrendo em 2020 na conta da equipe econômica. O resto do governo deu a sua
contribuição – e notável – ao colapso da economia, em especial com a atuação
tumultuada e incompetente na área da saúde pública.
Atuação na área
financeira internacional
Mas não foi só no campo
da macroeconomia que Paulo Guedes e seus auxiliares se destacaram
negativamente. Diferentemente do que às vezes se imagina, a política externa do
país não é prerrogativa apenas do Itamaraty. O ministério da Economia e outros
ministérios também têm responsabilidades importantes na área internacional.
Uma
das razões que levam o ministro da Economia a ter protagonismo na política
externa é o fato de ele ser o principal representante político do país em
organismos financeiros internacionais, como o Fundo Monetário Internacional, o
Banco Mundial, o Banco Interamericano de Desenvolvimento e o Novo Banco de
Desenvolvimento. No jargão adotado nessas instituições, ele é o “governador” do
Brasil. Com essas alavancas nas mãos, pode-se fazer muito de positivo – e
também, claro, muito estrago. O atual ministro, infelizmente, vem se
notabilizando pelos estragos que faz no campo financeiro multilateral.
É
um tema que conheço bem, pois trabalhei por mais de dez anos em instituições
multilaterais, em Washington e Xangai, entre 2007 e 2017. O Brasil era outro,
bem sei, principalmente até 2014. Depois veio a decadência política do governo
Dilma, seguida do medíocre governo Temer. Mas nada, nada mesmo, se compara ao
que tem feito o atual governo nesse campo. Nem mesmo a indigência manifesta da
equipe econômica de Temer se compara ao que temos hoje.
Banco
dos BRICS
Alguns
exemplos. Ao Brasil tocava, em 2020, indicar o segundo presidente do Novo Banco
de Desenvolvimento (NBD), mais conhecido como Banco dos BRICS, para um mandato
de 5 anos a partir de julho. Foi o resultado de uma difícil negociação,
concluída na cúpula dos líderes dos BRICS, em Fortaleza, em 2014. A presidente
Dilma Rousseff queria muito que o Brasil indicasse o primeiro presidente. A
Índia insistia em garantir para si essa possibilidade. Depois de muita
discussão, o Brasil concordou em ceder e ficou com o direito de indicar o
presidente seguinte. Na delegação brasileira, eu fui um dos que argumentaram
que era mais importante assinar logo o acordo de criação do NBD, em Fortaleza,
do que continuar insistindo em indicar o primeiro presidente.
Em
retrospecto, parece claro que foi um erro. A Índia acabou indicando um
presidente apagado, o banqueiro K.V. Kamath, de carreira ilustre, mas já em
idade avançada e em regime de pré-aposentadoria. Durante os seus 5 anos no
comando do NBD, sobressaiu-se pela inércia. (Uma avaliação crítica da fase
inicial do banco, do qual fui vice-presidente até fins de 2017, pode ser
encontrada no livro que publiquei no final do ano passado, O Brasil não cabe no
quintal de ninguém, pela editora LeYa.) Quando estávamos em Fortaleza,
finalizando a dura negociação do NBD, nunca em nossos piores pesadelos
poderíamos imaginar, leitor, que 6 anos depois o Brasil teria como presidente
um personagem caricato como Jair Bolsonaro e, como ministro da Economia, o
inefável Paulo Guedes. Se tivéssemos bola de cristal, teríamos talvez preferido
indicar o terceiro ou quarto presidente do banco!
Mas aqui estamos. Guedes
exerceu o direito de indicar e escolheu um certo Marcos Troyjo, figura
relativamente obscura e sem experiência relevante. Espero estar errado, mas o
que se sabe sobre o novo presidente do NBD não nos autoriza a esperar grande
coisa. Dificilmente será capaz de proporcionar a reorientação e o impulso
requeridos para uma instituição que começou mal sob a presidência de K.V.
Kamath. O leitor pode imaginar a minha frustração ao ver um banco promissor, do
qual fui um dos fundadores, passar das mãos de um presidente indiano inerte a um
presidente brasileiro aparentemente despreparado para o cargo.
Banco Mundial
A
atuação de Paulo Guedes como governador do Brasil em instituições sediadas em
Washington também se mostra altamente problemática, para dizer o mínimo. O caso
mais comentado é o da diretoria executiva do Brasil no Banco Mundial. Guedes
deixou a posição desocupada por cerca de sete meses para depois, a pedido de
Bolsonaro, indicar o ex-ministro Abraham Weintraub, nome escandalosamente
inadequado. Desnecessário frisar o rebaixamento do Brasil que resulta dessa
indicação. Weintraub como diretor executivo do Banco Mundial é coisa de Quarto
Mundo!
O pior é que fizemos, em
anos recentes, um esforço considerável, do qual eu mesmo participei, para
assegurar a posição de diretor executivo exclusivamente para o Brasil, sem ter
que compartilhá-la com outros países do nosso grupo no Banco Mundial.
Explico
em poucas palavras. Quando cheguei a Washington, em 2007, para assumir a
posição de diretor executivo pelo Brasil e outros países no Fundo Monetário
Internacional, o Brasil apresentava uma vulnerabilidade importante: o nosso
poder de voto no FMI era insuficiente para garantir com segurança a posição de
diretor executivo para o país. A solução encontrada por meus antecessores tinha
sido negociar com os países do nosso grupo nas instituições em Washington –
grupo que era essencialmente o mesmo no FMI e no Banco Mundial – o seguinte
arranjo: o Brasil reteria o comando exclusivo no FMI, mas aceitaria uma rotação
na posição de diretor executivo no Banco Mundial com Colômbia e Filipinas. Os
meus antecessores acreditavam, com razão, que o FMI era mais importante do que
o Banco Mundial, valendo assim a pena aceitar a rotação na diretoria executiva
desse último para garantir exclusividade na diretoria do primeiro.
Mas
esse arranjo não era satisfatório. Geralmente, eram fracos, às vezes muito
fracos, os nomes indicados por Colômbia e Filipinas para a rotação no cargo de
diretor executivo, e a nossa atuação no Banco Mundial sofria com isso. No meu
período em Washington, negociamos a duras penas, com sacrifício e não sem
muitos embates, um aumento sem precedentes do poder de voto do Brasil no FMI.
Tudo isso está relatado em detalhes no livro acima referido, que publiquei
recentemente. Graças a esse fortalecimento na nossa posição no FMI, foi
possível em seguida dispensar a rotação no Banco Mundial com Colômbia e Filipinas
– não sem desagradar esses países, claro, que insistiam em conservá-la.
Pois bem, o
que faz Paulo Guedes? Primeiro, deixa o cargo desocupado por cerca de 7 meses,
como mencionei. E, depois, indica o deplorável Abraham Weintraub. Foi para isso
que o Brasil tanto insistiu em manter o comando permanente do nosso grupo de
países no Banco Mundial?
Banco
Interamericano de Desenvolvimento
Absurda,
também, foi a atuação no Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID).
Trata-se de banco importante para a América Latina e o Caribe, que tem
condições de mobilizar volume expressivo de recursos para projetos de
investimento e desenvolvimento econômico e social na região. Haverá em breve
eleição para a presidência do BID. Existe uma regra não escrita, mas sempre
respeitada desde a criação do BID, em 1959, de que presidência fica com um
latino-americano. Da mesma forma, regras não escritas reservam a presidência do
Banco Mundial para um americano, e a do FMI para um europeu.
Guedes resolveu
apresentar candidato brasileiro, escolhendo um nome praticamente desconhecido
da área bancária privada. Contava aparentemente com apoio americano, em razão
da relação supostamente especial entre Trump e Bolsonaro. Não funcionou. O
governo Trump atropelou a candidatura posta por Guedes e resolveu apresentar
candidato próprio, Mauricio Claver-Carone, um cidadão americano, de
ultradireita, integrante do Conselho de Segurança Nacional da Casa Branca.
Trump mostrou assim disposição de violar a regra sempre respeitada por todos os
países membros, inclusive os Estados Unidos, de que a presidência cabia a um
latino-americano.
O
que faz então Guedes? Cúmulo da indignidade, emite uma nota conjunta com o
chanceler Ernesto Araújo, dando boas-vindas à candidatura americana! Ou seja,
concordando com a disposição dos Estados Unidos de violar a regra não escrita
que favorece a América Latina e, na prática, jogando o candidato brasileiro ao
mar. Como observou alguém, a definição de vira-lata foi atualizada com sucesso.
A
bem verdade, a metáfora de Nelson Rodrigues – o célebre complexo de vira-lata
que caracteriza o comportamento do brasileiro diante de americanos e europeus –
já nem mais dá conta do grau de subserviência exibido pelos integrantes do
governo brasileiro, a começar pelo próprio Bolsonaro.
Há um agravante, que
ainda não foi noticiado no Brasil. Em entrevista à agência EFE, publicada em 17
de junho, Claver-Carone afirmou que a ideia da candidatura americana teria
partido, por incrível que pareça, do próprio Bolsonaro: “Em uma chamada telefônica,
casual, há duas semanas”, disse ele, “o presidente Bolsonaro havia dito ao
presidente Trump que estava pensando em um candidato (para o BID), mas que
apoiaria um candidato norte-americano, se fosse apresentado. E com isso
começamos a pensar nas circunstâncias, e se era factível fazê-lo nesses
momentos excepcionais”.
Talvez
não seja verdade, mas faço o registro. Caberia apurar. Custo a crer que um
presidente brasileiro, mesmo Bolsonaro, se rebaixe dessa maneira. A ser
verdadeira essa informação, já não estaríamos diante de vira-latismo ou
complexo de inferioridade, como mencionei, mas da mais pura e abjeta
vassalagem.
A nossa infelicidade,
volto a dizer, é a combinação letal do pior governo da nossa história com a
pior crise da nossa história. E ninguém deve se iludir ou tentar iludir outros:
Paulo Guedes e sua equipe constituem parte integrante – e destacada – desse
desastre.
(A parte inicial deste texto
foi publicada como artigo na revista Carta Capital, em 26 de junho de 2020.)
Paulo Nogueira Batista Jr. é economista, foi vice-presidente do Novo Banco de
Desenvolvimento, estabelecido pelos BRICS em Xangai, e diretor executivo no FMI
pelo Brasil e mais dez países. Lançou no final do ano passado, pela editora
LeYa, o livro O Brasil não cabe no quintal de ninguém: bastidores da vida de um
economista brasileiro no FMI e nos BRICS e outros textos sobre nacionalismo e
nosso complexo de vira-lata.
Desafios da realidade concreta https://bit.ly/3fd2YMs
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