27 junho 2020

Uma crônica para descontrair


Um outro forró
Cícero Belmar

Começo o dia com a firme decisão de jogar fora umas tralhas, papéis avulsos que estão juntando ácaro e revistas que não me servirão sequer para pesquisa. Antes de descartá-los, checo os objetos e me deparo com uma agenda de 2019. Convenço-me de que ela não tem mais utilidade alguma e por isso, rasgarei as páginas. Mas, no último instante, me veio a curiosidade de saber (relembrar) o que estava fazendo há exatamente um ano.
Agendas às vezes são provas documentais, mas também são recados que mandamos para o futuro. O 15 de junho de 2019 foi um sábado, sol aberto. Li o que estava escrito no espaço reservado para aquele dia. Duas frases: “Comprar passagem de ida e volta”; “Ir ao supermercado: o  vinho de papai e o chá de mamãe”.
Eu teria que aproveitar a folga daquele sábado porque vinha de uma semana bastante corrida. Escrevi aquilo na agenda, com antecedência, para grifar as tarefas que seriam mais importantes e intransferíveis. Afinal, não tivera tempo, durante os dias úteis daquela semana, para fazer coisas além da rotina. Lembro-me que fiz exatamente como o previsto, aproveitando o sábado 15 livre.
Comprar as passagens, o vinho e o chá eram os meus preparativos para a viagem que eu faria por causa dos festejos de São João. Todo nordestino que mora na capital do seu Estado e tem família no interior, como eu, faz a viagem de volta às origens nesse período do ano. As comemorações juninas à beira de uma fogueira, com muito forró e animação, é a reafirmação do nosso sentimento de pertencimento.
(Abrindo parênteses: O vinho do Porto é a bebida predileta do meu pai. Aos 90 anos, ele mantém o hábito de tomar um calicezinho antes do almoço; minha mãe, também aos 90, ama os chazinhos aromatizados e frutados antes de dormir. Sempre que vou revê-los, gosto de mimá-los. Compro o que encontro de melhor, vale a pena vê-los com sorrisos de crianças, quando recebem os presentinhos.)
Viajei no dia 20, passei o final de semana seguinte em Bodocó, no Sertão do Araripe, a 650 quilômetros do Recife. O ponto alto dos festejos juninos é no São João, entre 23 e 24 de junho. Cada família faz sua comemoração particular, com uma espécie de ceia regional num dia; mas há também participa de uma festa coletiva no outro dia. Essa ocorreu na frente da Igreja Matriz, organizada pelo Sesc.
Meu irmão, Herbert Adriano, que coordena os eventos culturais do Sesc Ler, em Bodocó, estava à frente e caprichou na quermesse, com barraquinhas que vendiam comidas e bebidas típicas e deliciosas; também programou as apresentações das quadrilhas juninas, casamento matuto, desfile da rainha do milho. Foi uma noite leve, poética, divertida. Tudo tão puro que só existe uma palavra para defini-la com exatidão: singela.
Tudo isso me veio com a leitura de um registro na agenda. Os festejos juninos são sempre assim, milho verde assado e cozinhado, pamonha, canjica, pé-de-moleque, bolos diversos, quentão, fantasias, forró, muita cultura popular.
Um ano se passou. Quem diria, meu Deus, que hoje estaríamos vivendo um momento tão diferente?  Uma pandemia que nos tirou das ruas, que impediu os festejos e nos joga no poço das nostalgias? A viagem é a lembrança.
Este ano, teremos “lives” em vez de fogueiras. No próximo, quem sabe, sob as bênçãos da vacina, a bandinha poderá nos tocar um outro forró bem mais animado.
*Cícero Belmar  é escritor e jornalista. Autor de contos, romances, biografias, peças de teatro e livros para crianças e jovens. Membro da Academia Pernambucana de Letras. 
[Ilustração: João Werner]
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