Um passeio pela história
monetária
Nas
economias contemporâneas, a moeda está fundada na confiança
Luiz Gonzaga Belluzzo,
CartaCapital
A partir da Revolução Comercial e do Renascimento,
a coexistência entre a vigorosa universalização mercantil e o processo de
formação dos Estados nacionais suscitou a criação de duas esferas monetárias.
Enquanto o ouro e a prata eram moedas-mercadoria de valor variável, mas aptas a
denominar contratos e liquidar obrigações no comércio a longa distância, o
poder de cunhagem dos príncipes fixava o valor da moeda imaginária no âmbito do
comércio local ou nacional.
A concomitância entre a expansão do mercado mundial e a formação dos Estados nacionais acentuou as contradições entre o poder político do príncipe - o exercício da soberania monetária em seu território – e as exigências mercantis e capitalistas de uma ordem monetária global. Entre os séculos XV e XIX, o embate prático e ideológico – desde os mercantilistas até os fundadores da moderna economia política - travou-se em torno do conflito entre a universalização da moeda a partir de seu caráter mercantil-capitalista e as limitações impostas pelo exercício da soberania.
No final do século XIX, o avanço e a metástase da Revolução Industrial para os Estados Unidos e para a Europa continental foram acompanhados pela a constituição de um sistema financeiro global, sob a hegemonia da libra. Essas transformações da economia mercantil-capitalista “resolveram”, provisoriamente, - no imaginário social e na prática dos negócios - a “contradição” a favor da concepção mercantil e metálica da moeda, com a adoção do padrão-ouro.
A ampliação do espaço das trocas, a mercantilização geral impôs o predomínio absoluto dos critérios de mensuração da riqueza sob a forma abstrata. Esse movimento se desenvolve, como foi dito, nas práticas da vida material e no imaginário social dos protagonistas do processo econômico. Mas a afirmação da moeda universal promove a crescente abstração de suas determinações materiais e passa a subordinar sua determinação material às determinações funcionais: as moedas eram socialmente aceitas pelo valor que diziam portar, a quantidade de ouro que elas de fato carregavam foi se tornando indiferente, produzindo uma dissociação de seu valor do conteúdo material que a constitui.
Ao longo do processo de consolidação da economia monetária, os proprietários de riqueza passaram a depositar as moedas sob a guarda de frações do estrato mercantil, em geral grandes comerciantes, que administravam formas embrionárias dos bancos modernos. Esses depósitos, motivados por questões como segurança, eram certificados por papéis, que atestavam a quantia depositada e o depositário onde a moeda metálica se encontrava. À medida que esses papéis foram convencionalmente aceitos, passaram a circular com maior intensidade e substituir o uso da moeda metálica. Os metais passam então a desempenhar a função de lastro, garantindo, mediante uma regra de conversibilidade, a natureza monetária dos bilhetes emitidos pelos depositários do metal.
Nos complexos sistemas monetários engendrados pelo processo descrito, instituições financeiras privadas são capazes de criar meios de pagamento. Os bancos comerciais recebem depósitos à vista do publico. Sabedores da reduzida probabilidade de que todos venham reclamar seus depósitos ao mesmo tempo, esses bancos emprestam o dinheiro a outros agentes mediante pagamento de juros. Cada depósito feito gera para a economia um valor adicional, na ordem da porcentagem permitida aos bancos comerciais emprestarem.
Cabe ainda chamar atenção para a existência de ativos financeiros que, por possuírem um grau de liquidez relativamente elevado, são entendidos como quase-moedas, compondo outros agregados monetários, mais amplos e menos líquidos.
Nas economias contemporâneas, a moeda está fundada na confiança. A confiança é um fenômeno coletivo, social. Tenho confiança na moeda porque sei que o outro está disposto a aceitá-la como forma geral de existência do valor das mercadorias particulares, dos contratos e da riqueza. O metabolismo da troca, da produção, dos pagamentos depende do grau de certeza na preservação da forma geral do valor, que deve comandar cada ato particular e contingente.
Em seu livro La Monnaie Souveraine, os economistas Michel Aglietta e André Orléan definem a existência de três lógicas articuladas que sustentam a reprodução da ordem monetária enquanto dimensão da ordem social: a confiança hierárquica, a confiança metódica e a confiança ética. “A confiança hierárquica se exprime sob a forma de uma instituição que anuncia as normas de utilização da moeda e que é responsável pela emissão do meio de pagamento final... A confiança metódica opera no âmbito da segurança das relações inter-individuais, garante a reprodução quotidiana e rotineira dos atos que constituem a ordem monetária, sobretudo os pagamentos das dívidas nascidas do seu funcionamento... A confiança ética diz respeito à caráter universal dos direitos da pessoa humana.”
Em última instância, a reprodução da sociedade fundada no enriquecimento privado depende da capacidade do Estado de manter a integridade da convenção social que serve de norma aos atos dos produtores independentes. A ordem monetária é indissociável da soberania do Estado, e sua sobrevivência supõe que os proprietários privados acatem a moeda com uma convenção necessária para a reiteração do processo de circulação das mercadorias, de liquidação das dívidas e avaliação da riqueza.
Keynes, seguramente o economista do último século que melhor compreendeu, em todas as suas conseqüências, o fenômeno monetário no capitalismo, trata de sublinhar as relações umbilicais entre a moeda e a soberania do Estado. “A era do dinheiro sucedeu à era da troca direta logo que os homens adotaram a moeda de conta. E a idade do dinheiro – papel ou do dinheiro estatal – surgiu quando o Estado postulou o direito de declarar o que deveria funcionar como moeda de conta, quando ele se dispôs não apenas a impor o uso do dicionário, mas também a escrevê-lo”, escreveu.
É a partir deste ato de soberania que se tornam possíveis a denominação de contratos e a circulação dos documentos de reconhecimento de dívida, com as letras de câmbio. São esses reconhecimentos de dívida que, em sua evolução, passam a funcionar como dinheiro bancário. Num primeiro momento, os passivos privados emitidos ou reconhecidos pelos banqueiros, passam a circular como dinheiro, mas quando chegam ao momento do vencimento devem ser liquidados pela presença de dinheiro estatal. Numa segunda etapa, o Estado imprime sua chancela à equiparação dos passivos bancários ao dinheiro emitido pelo Estado, que se limita a regular a circulação da dívida bancária em suas funções monetárias, estabelecendo as regras de validação e controle do dinheiro emitido privadamente pelos bancos.
Keynes conferia tamanha importância ao dinheiro na economia capitalista, que a entendia como uma economia monetária da produção. Usava esse conceito para designar um sistema social de produção em que o objetivo dos produtores é a acumulação de riqueza sob a forma monetária e não a maximização do produto material, mediante a utilização de recursos escassos*.
Na Economia Monetária da Produção imperam a divisão do trabalho, a propriedade privada das empresas, o pagamento de salários monetários aos trabalhadores e a moeda de crédito administrada pelos bancos. Sem a criação de meios de pagamento e o provimento de liquidez pelo sistema bancário, os empresários não podem comprar os meios de produção e pagar os salários aos trabalhadores. Nessa economia, as expectativas dos empresários a respeito dos lucros futuros, ou seja, da captura dos ganhos proporcionados pelo aumento da produtividade social do trabalho, só são viabilizadas mediante o adiantamento de capital monetário.
Os empresários, em conjunto, podem gastar acima de suas receitas correntes por conta da existência do sistema de crédito, que inclui os bancos e os demais intermediários financeiros. Operando num regime de reservas fracionárias e, sobretudo, sob a proteção de uma instituição central provedora de liquidez e redutora de riscos, os bancos de depósito desfrutam de uma condição peculiar em relação ao demais intermediários financeiros: a prerrogativa de multiplicar passivos bancários que são aceitos como meios de pagamento. Estes depósitos podem ser movimentados por seus titulares com o propósito de adquirir bens e serviços ou de liquidar contratos.
Os capitalistas gastam na expectativa capturar lucros, enquanto geram – ao pagar os “fatores de produção” - a renda da comunidade. No processo de “fechamento” do circuito gasto-utilização da renda, os lucros capturados pelas empresas e a fração da renda não-gasta, apropriada pelas famílias, definem o montante da poupança agregada, ou seja, o funding adicional necessário para o pagamento do serviço das dívidas e a acumulação de riqueza. A poupança monetária tem uma dupla natureza: enquanto abstenção do consumo é um ato negativo, ao mesmo tempo em que se apresenta como uma reivindicação positiva à posse da riqueza abstrata. Mas a decisão individual quanto a sua utilização tem conseqüências importantes: a aquisição de ativos novos ou existentes, reais ou financeiros vai reconfigurar a situação patrimonial de empresas e famílias. Numa hipotética economia fechada e sem governo, quanto maior a propensão a poupar das famílias, menor será a receita das empresas e maior seu endividamento. Intermediado pelos bancos ou demais instituições financeiras, o fluxo de poupança vai se encarnar nos depósitos à vista ou a prazo, nos títulos de dívida ou em ações. A forma de utilização da poupança vai redefinir, a cada momento, a posição de cada um na propriedade dos direitos sobre a renda e sobre o patrimônio.
As relações de crédito-débito e as ações que representam os direitos de propriedade geram um estoque de reivindicações à apropriação da riqueza e da renda da sociedade. As avaliações desse estoque de direitos nos mercados especializados passam a comandar as condições em que o fluxo de crédito é ofertado pelos bancos e demandado pelas empresas. Em última instância, os mercados de títulos que representam a riqueza produzida determinam o estado de expectativas que permite o financiamento dos gastos em investimento e em consumo, ou seja, a nova “criação” de valor que determina a renda e o emprego na “economia real”.
O desejo de investir, de criar riqueza nova não é um desejo abstrato de “possuir mais riqueza”, como no ato de poupar. A avaliação empresarial para decidir o investimento começa por tomar em conta os rendimentos esperados da operação dos novos bens de capital especializados. Isso supõe: 1) a avaliação da capacidade do investimento disputar o mercado com os concorrentes; 2) o calculo da demanda esperada pelo bem que ele vai produzir; 3) a projeção dos custos de produção evolvidos na nova operação. Finalmente, a inclinação a investir depende da taxa de juro, ou seja, da taxa que converte o fluxo de rendimentos prováveis dessas formas particulares e especializadas de riqueza em seu valor presente, calculado em termos monetários.
A Revolução Industrial forjou as condições para o desenvolvimento desimpedido da acumulação capitalista ao promover a diferenciação técnica e econômica do produto material entre os setores que produzem bens de consumo e os que geram os meios de produção. Os bens de produção - destinados diretamente para a acumulação produtiva - são os elementos materiais adequados para o movimento incessante da acumulação e para a reprodução das relações sociais capitalistas. A partir da diferenciação do produto, o progresso técnico torna-se inerente ao desenvolvimento das forças produtivas e desembaraça o movimento de acumulação produtiva dos limites externos e “naturais” à sua expansão. O sistema de maquinaria subordina de forma real a força de trabalho ao capital e passa a regular as condições de reprodução ampliada da economia capitalista.
Não por acaso, a primeira revolução industrial floresceu no solo fértil da superioridade mercantil e manufatureira da Inglaterra. Mas a ruptura dos métodos de produção, ou seja, emergência das transformações produtivas do século XVIII só fez acentuar a natureza internacionalista e “exportadora” da economia inglesa. Entre o fim do século XVIII e o crepúsculo do século XIX, o capitalismo transfigurou-se enquanto modo de produção de riqueza e sistema de relações internacionais. Por volta de 1870, a consolidação de um padrão monetário universal impulsionou a generalização das práticas de financiamento e de pagamentos internacionais, sob a égide da libra-ouro. Simultaneamente os bancos de depósito ajustaram suas funções e formas de operação à nova economia industrial em que impera uma nova divisão técnica e social do trabalho, consubstanciada na crescente diferenciação entre o departamento de meios de consumo e o departamento de meios de produção.
A internacionalização capitalista sob a hegemonia inglesa produz a industrialização dos EUA e da Europa e, simultaneamente, a periferia produtora de matérias-primas e alimentos. Não por acaso, os bancos ingleses mantiveram como função primordial o provimento de crédito internacional, sustentando o crescimento do comércio e ensejando as condições para a industrialização retardatária, sobretudo nos Estados Unidos e na Alemanha. Nesses países, o sistema de crédito assume a função de antecipar capital monetário para a indústria nascente e de promover a fusão entre o capital industrial e a alta finança. Durante a Segunda Revolução Industrial praticamente todos os setores da economia foram dominados por grandes empresas, sob o comando do capital financeiro. O processo de reprodução e acumulação capitalista - em suas indissociáveis dimensões material, financeira e monetária - impôs a dominância do sistema de crédito – incluído o Banco Central – na hierarquia dos poderes que comandam as decisões de investimento, poupança e consumo. Nessa economia com grande concentração de capital fixo, a dinâmica de longo prazo depende da faculdade concedida aos bancos e demais instituições financeiras de adiantar liquidez e impulsionar a competição pela inovação tecnológica incorporada nas novas gerações de insumos e equipamentos.
O desenvolvimento da economia monetária da produção suscitou a subordinação do sistema de crédito à lógica da acumulação produtiva e, ao mesmo tempo, ensejou, como veremos, a possibilidade de episódios especulativos que antecedem as crises de crédito e seu rastro de destruição de valores. A história do capitalismo pode ser contada como a alternância entre fases de otimismo e prosperidade, seguidas de desalento e declínio do ritmo de atividade. Esta alternância, não raro, se apresenta sob a forma exacerbada: períodos de euforia especulativa sucedidos por crises financeiras. Este comportamento cíclico tem assumido, no entanto, diversas configurações e diferentes graus de severidade, de acordo com as regras e instituições que presidem cada uma das etapas da economia capitalista.
A concomitância entre a expansão do mercado mundial e a formação dos Estados nacionais acentuou as contradições entre o poder político do príncipe - o exercício da soberania monetária em seu território – e as exigências mercantis e capitalistas de uma ordem monetária global. Entre os séculos XV e XIX, o embate prático e ideológico – desde os mercantilistas até os fundadores da moderna economia política - travou-se em torno do conflito entre a universalização da moeda a partir de seu caráter mercantil-capitalista e as limitações impostas pelo exercício da soberania.
No final do século XIX, o avanço e a metástase da Revolução Industrial para os Estados Unidos e para a Europa continental foram acompanhados pela a constituição de um sistema financeiro global, sob a hegemonia da libra. Essas transformações da economia mercantil-capitalista “resolveram”, provisoriamente, - no imaginário social e na prática dos negócios - a “contradição” a favor da concepção mercantil e metálica da moeda, com a adoção do padrão-ouro.
A ampliação do espaço das trocas, a mercantilização geral impôs o predomínio absoluto dos critérios de mensuração da riqueza sob a forma abstrata. Esse movimento se desenvolve, como foi dito, nas práticas da vida material e no imaginário social dos protagonistas do processo econômico. Mas a afirmação da moeda universal promove a crescente abstração de suas determinações materiais e passa a subordinar sua determinação material às determinações funcionais: as moedas eram socialmente aceitas pelo valor que diziam portar, a quantidade de ouro que elas de fato carregavam foi se tornando indiferente, produzindo uma dissociação de seu valor do conteúdo material que a constitui.
Ao longo do processo de consolidação da economia monetária, os proprietários de riqueza passaram a depositar as moedas sob a guarda de frações do estrato mercantil, em geral grandes comerciantes, que administravam formas embrionárias dos bancos modernos. Esses depósitos, motivados por questões como segurança, eram certificados por papéis, que atestavam a quantia depositada e o depositário onde a moeda metálica se encontrava. À medida que esses papéis foram convencionalmente aceitos, passaram a circular com maior intensidade e substituir o uso da moeda metálica. Os metais passam então a desempenhar a função de lastro, garantindo, mediante uma regra de conversibilidade, a natureza monetária dos bilhetes emitidos pelos depositários do metal.
Nos complexos sistemas monetários engendrados pelo processo descrito, instituições financeiras privadas são capazes de criar meios de pagamento. Os bancos comerciais recebem depósitos à vista do publico. Sabedores da reduzida probabilidade de que todos venham reclamar seus depósitos ao mesmo tempo, esses bancos emprestam o dinheiro a outros agentes mediante pagamento de juros. Cada depósito feito gera para a economia um valor adicional, na ordem da porcentagem permitida aos bancos comerciais emprestarem.
Cabe ainda chamar atenção para a existência de ativos financeiros que, por possuírem um grau de liquidez relativamente elevado, são entendidos como quase-moedas, compondo outros agregados monetários, mais amplos e menos líquidos.
Nas economias contemporâneas, a moeda está fundada na confiança. A confiança é um fenômeno coletivo, social. Tenho confiança na moeda porque sei que o outro está disposto a aceitá-la como forma geral de existência do valor das mercadorias particulares, dos contratos e da riqueza. O metabolismo da troca, da produção, dos pagamentos depende do grau de certeza na preservação da forma geral do valor, que deve comandar cada ato particular e contingente.
Em seu livro La Monnaie Souveraine, os economistas Michel Aglietta e André Orléan definem a existência de três lógicas articuladas que sustentam a reprodução da ordem monetária enquanto dimensão da ordem social: a confiança hierárquica, a confiança metódica e a confiança ética. “A confiança hierárquica se exprime sob a forma de uma instituição que anuncia as normas de utilização da moeda e que é responsável pela emissão do meio de pagamento final... A confiança metódica opera no âmbito da segurança das relações inter-individuais, garante a reprodução quotidiana e rotineira dos atos que constituem a ordem monetária, sobretudo os pagamentos das dívidas nascidas do seu funcionamento... A confiança ética diz respeito à caráter universal dos direitos da pessoa humana.”
Em última instância, a reprodução da sociedade fundada no enriquecimento privado depende da capacidade do Estado de manter a integridade da convenção social que serve de norma aos atos dos produtores independentes. A ordem monetária é indissociável da soberania do Estado, e sua sobrevivência supõe que os proprietários privados acatem a moeda com uma convenção necessária para a reiteração do processo de circulação das mercadorias, de liquidação das dívidas e avaliação da riqueza.
Keynes, seguramente o economista do último século que melhor compreendeu, em todas as suas conseqüências, o fenômeno monetário no capitalismo, trata de sublinhar as relações umbilicais entre a moeda e a soberania do Estado. “A era do dinheiro sucedeu à era da troca direta logo que os homens adotaram a moeda de conta. E a idade do dinheiro – papel ou do dinheiro estatal – surgiu quando o Estado postulou o direito de declarar o que deveria funcionar como moeda de conta, quando ele se dispôs não apenas a impor o uso do dicionário, mas também a escrevê-lo”, escreveu.
É a partir deste ato de soberania que se tornam possíveis a denominação de contratos e a circulação dos documentos de reconhecimento de dívida, com as letras de câmbio. São esses reconhecimentos de dívida que, em sua evolução, passam a funcionar como dinheiro bancário. Num primeiro momento, os passivos privados emitidos ou reconhecidos pelos banqueiros, passam a circular como dinheiro, mas quando chegam ao momento do vencimento devem ser liquidados pela presença de dinheiro estatal. Numa segunda etapa, o Estado imprime sua chancela à equiparação dos passivos bancários ao dinheiro emitido pelo Estado, que se limita a regular a circulação da dívida bancária em suas funções monetárias, estabelecendo as regras de validação e controle do dinheiro emitido privadamente pelos bancos.
Keynes conferia tamanha importância ao dinheiro na economia capitalista, que a entendia como uma economia monetária da produção. Usava esse conceito para designar um sistema social de produção em que o objetivo dos produtores é a acumulação de riqueza sob a forma monetária e não a maximização do produto material, mediante a utilização de recursos escassos*.
Na Economia Monetária da Produção imperam a divisão do trabalho, a propriedade privada das empresas, o pagamento de salários monetários aos trabalhadores e a moeda de crédito administrada pelos bancos. Sem a criação de meios de pagamento e o provimento de liquidez pelo sistema bancário, os empresários não podem comprar os meios de produção e pagar os salários aos trabalhadores. Nessa economia, as expectativas dos empresários a respeito dos lucros futuros, ou seja, da captura dos ganhos proporcionados pelo aumento da produtividade social do trabalho, só são viabilizadas mediante o adiantamento de capital monetário.
Os empresários, em conjunto, podem gastar acima de suas receitas correntes por conta da existência do sistema de crédito, que inclui os bancos e os demais intermediários financeiros. Operando num regime de reservas fracionárias e, sobretudo, sob a proteção de uma instituição central provedora de liquidez e redutora de riscos, os bancos de depósito desfrutam de uma condição peculiar em relação ao demais intermediários financeiros: a prerrogativa de multiplicar passivos bancários que são aceitos como meios de pagamento. Estes depósitos podem ser movimentados por seus titulares com o propósito de adquirir bens e serviços ou de liquidar contratos.
Os capitalistas gastam na expectativa capturar lucros, enquanto geram – ao pagar os “fatores de produção” - a renda da comunidade. No processo de “fechamento” do circuito gasto-utilização da renda, os lucros capturados pelas empresas e a fração da renda não-gasta, apropriada pelas famílias, definem o montante da poupança agregada, ou seja, o funding adicional necessário para o pagamento do serviço das dívidas e a acumulação de riqueza. A poupança monetária tem uma dupla natureza: enquanto abstenção do consumo é um ato negativo, ao mesmo tempo em que se apresenta como uma reivindicação positiva à posse da riqueza abstrata. Mas a decisão individual quanto a sua utilização tem conseqüências importantes: a aquisição de ativos novos ou existentes, reais ou financeiros vai reconfigurar a situação patrimonial de empresas e famílias. Numa hipotética economia fechada e sem governo, quanto maior a propensão a poupar das famílias, menor será a receita das empresas e maior seu endividamento. Intermediado pelos bancos ou demais instituições financeiras, o fluxo de poupança vai se encarnar nos depósitos à vista ou a prazo, nos títulos de dívida ou em ações. A forma de utilização da poupança vai redefinir, a cada momento, a posição de cada um na propriedade dos direitos sobre a renda e sobre o patrimônio.
As relações de crédito-débito e as ações que representam os direitos de propriedade geram um estoque de reivindicações à apropriação da riqueza e da renda da sociedade. As avaliações desse estoque de direitos nos mercados especializados passam a comandar as condições em que o fluxo de crédito é ofertado pelos bancos e demandado pelas empresas. Em última instância, os mercados de títulos que representam a riqueza produzida determinam o estado de expectativas que permite o financiamento dos gastos em investimento e em consumo, ou seja, a nova “criação” de valor que determina a renda e o emprego na “economia real”.
O desejo de investir, de criar riqueza nova não é um desejo abstrato de “possuir mais riqueza”, como no ato de poupar. A avaliação empresarial para decidir o investimento começa por tomar em conta os rendimentos esperados da operação dos novos bens de capital especializados. Isso supõe: 1) a avaliação da capacidade do investimento disputar o mercado com os concorrentes; 2) o calculo da demanda esperada pelo bem que ele vai produzir; 3) a projeção dos custos de produção evolvidos na nova operação. Finalmente, a inclinação a investir depende da taxa de juro, ou seja, da taxa que converte o fluxo de rendimentos prováveis dessas formas particulares e especializadas de riqueza em seu valor presente, calculado em termos monetários.
A Revolução Industrial forjou as condições para o desenvolvimento desimpedido da acumulação capitalista ao promover a diferenciação técnica e econômica do produto material entre os setores que produzem bens de consumo e os que geram os meios de produção. Os bens de produção - destinados diretamente para a acumulação produtiva - são os elementos materiais adequados para o movimento incessante da acumulação e para a reprodução das relações sociais capitalistas. A partir da diferenciação do produto, o progresso técnico torna-se inerente ao desenvolvimento das forças produtivas e desembaraça o movimento de acumulação produtiva dos limites externos e “naturais” à sua expansão. O sistema de maquinaria subordina de forma real a força de trabalho ao capital e passa a regular as condições de reprodução ampliada da economia capitalista.
Não por acaso, a primeira revolução industrial floresceu no solo fértil da superioridade mercantil e manufatureira da Inglaterra. Mas a ruptura dos métodos de produção, ou seja, emergência das transformações produtivas do século XVIII só fez acentuar a natureza internacionalista e “exportadora” da economia inglesa. Entre o fim do século XVIII e o crepúsculo do século XIX, o capitalismo transfigurou-se enquanto modo de produção de riqueza e sistema de relações internacionais. Por volta de 1870, a consolidação de um padrão monetário universal impulsionou a generalização das práticas de financiamento e de pagamentos internacionais, sob a égide da libra-ouro. Simultaneamente os bancos de depósito ajustaram suas funções e formas de operação à nova economia industrial em que impera uma nova divisão técnica e social do trabalho, consubstanciada na crescente diferenciação entre o departamento de meios de consumo e o departamento de meios de produção.
A internacionalização capitalista sob a hegemonia inglesa produz a industrialização dos EUA e da Europa e, simultaneamente, a periferia produtora de matérias-primas e alimentos. Não por acaso, os bancos ingleses mantiveram como função primordial o provimento de crédito internacional, sustentando o crescimento do comércio e ensejando as condições para a industrialização retardatária, sobretudo nos Estados Unidos e na Alemanha. Nesses países, o sistema de crédito assume a função de antecipar capital monetário para a indústria nascente e de promover a fusão entre o capital industrial e a alta finança. Durante a Segunda Revolução Industrial praticamente todos os setores da economia foram dominados por grandes empresas, sob o comando do capital financeiro. O processo de reprodução e acumulação capitalista - em suas indissociáveis dimensões material, financeira e monetária - impôs a dominância do sistema de crédito – incluído o Banco Central – na hierarquia dos poderes que comandam as decisões de investimento, poupança e consumo. Nessa economia com grande concentração de capital fixo, a dinâmica de longo prazo depende da faculdade concedida aos bancos e demais instituições financeiras de adiantar liquidez e impulsionar a competição pela inovação tecnológica incorporada nas novas gerações de insumos e equipamentos.
O desenvolvimento da economia monetária da produção suscitou a subordinação do sistema de crédito à lógica da acumulação produtiva e, ao mesmo tempo, ensejou, como veremos, a possibilidade de episódios especulativos que antecedem as crises de crédito e seu rastro de destruição de valores. A história do capitalismo pode ser contada como a alternância entre fases de otimismo e prosperidade, seguidas de desalento e declínio do ritmo de atividade. Esta alternância, não raro, se apresenta sob a forma exacerbada: períodos de euforia especulativa sucedidos por crises financeiras. Este comportamento cíclico tem assumido, no entanto, diversas configurações e diferentes graus de severidade, de acordo com as regras e instituições que presidem cada uma das etapas da economia capitalista.
* Keynes, John
Maynard. Complete Works, Mogridgge (org). Vol. V,Macmillan, Londres, 1988.
Em qualquer situação, a correlação de forças é um dado obrigatório
na análise política https://bit.ly/3eXwCFm
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