Heroísmo, astúcia e canalismo
Ronaldo Correia de Brito
Sempre preferi Galileu Galilei
a Giordano Bruno.
A atitude de Galileu perante o
Tribunal da Inquisição, abjurando as suas descobertas no campo da astronomia e
da física, para garantir a vida e a possibilidade de continuar investigando o
universo, me parece científica e moderna. Giordano Bruno, ao contrário,
perseverou nas afirmações que contrariavam os dogmas da Igreja Católica e foi
condenado à fogueira.
(Tome cuidado com a mania de
afirmar que a Terra é redonda.)
A coragem de Giordano é
invejável. Mas os heróis morrem cedo e deixam apenas o exemplo de heroísmo.
Galileu parece um covarde quando, aos setenta anos, na perspectiva de passar o
restante dos seus dias na cadeia, faz uma retratação pública e retira o que
afirmara: que a Terra girava em torno do Sol e de si mesma, que Júpiter era um
centro astral, com satélites orbitando ao seu redor, que as estrelas eram
mutáveis. Tudo o que contrariava o pensamento aristotélico, base do poder da Igreja.
Ao negar-se, Galileu renuncia
às glórias do seu tempo para ter um pouco mais de vida e continuar os estudos.
Esta seria a verdadeira coragem, um compromisso com o eterno? Graças ao gesto a
ciência saiu da teoria para a experimentação. Giordano lembra o carvalho da
fábula, que não se dobra diante da tempestade e termina partindo-se ao meio.
Galileu é o bambuzinho flexível, se curva até o chão. Passada a tempestade, ele
se põe de pé, vivo e inteiro.
Se Galileu fosse brasileiro,
seu gesto seria aclamado como astúcia. Enganar faz parte de nossa cultura. Dois
autores brasileiros criaram personagens frequentemente referidos como modelos
da alma nacional. Ariano Suassuna João Grilo, no Auto da Compadecida, a
partir dos folhetos de cordel e de histórias da tradição oral. Mário de Andrade
baseou-se nos mitos indígenas para nos dar Macunaíma. Os críticos
insistem nas semelhanças dos dois personagens, mas Ariano faz questão de
mostrar as diferenças. João Grilo representa o nordestino pobre, humilhado, com
um certo grau de consciência social, usando os recursos da malícia e da
inteligência para sobreviver e defender-se dos seus opressores, os patrões e
Deus. Em qualquer situação ele usa o “jeito”, modo tipicamente brasileiro de
arranjar as coisas.
– E difícil quer dizer sem
jeito? Sem jeito! Sem jeito por quê? Vocês são uns
pamonhas, qualquer coisinha estão arriando. Não vê que tiveram
tudo na terra? Se tivessem tido que aguentar o rojão de João Grilo, passando
fome e comendo macambira na seca, garanto que tinham mais coragem.
Apesar das malandragens e
estratagemas de que se vale para chegar aos fins desejados, João Grilo faz
parte do Brasil real de que falava Machado de Assis. Macunaíma é assumidamente
sem caráter, confesso preguiçoso, mesmo pautando-se pela busca de um sentido,
que não encontra.
Tudo que fora a existência dele
apesar de tantos casos tanta brincadeira tanta ilusão tanto sofrimento tanto
heroísmo, afinal não fora sinão um se deixar viver; e pra parar na cidade do
Delmiro ou na ilha de Marajó que são desta Terra carecia de ter um sentido. E
ele não tinha coragem pra uma organização.
Macunaíma pode se confundir com
mais um estereotipo de brasileiro, o de povo sem sentido e sem ordem. João
Grilo, se é possível comparar realidade com ficção, está mais para Galileu.
Nestes dois, o desejo de permanecer vivo é heroico, porque tem um fim e uma
causa. João Grilo, com a intervenção da Compadecida, volta à vida de
tanta vontade que estava de enriquecer. Galileu quer continuar vivo para
reafirmar mais adiante, tudo o que negara. Já Macunaíma, mesmo se transformando
na constelação da Ursa Maior, é o mesmo herói capenga que de tanto penar na
terra sem saúde e com muita saúva, se aborreceu de tudo, foi-se embora e banza
solitário no campo vasto do céu.
Parecemos com o povo russo na
mania de buscar a alma nacional. O caráter de uma nação se constrói a partir de
heróis reais e imaginários, literários e mitológicos. E também no exemplo dos
seus políticos. Mas nesse espelho temos tido pouca sorte.
Melhor a literatura. Nela, se
um herói não presta, viramos a página ou trocamos de livro. Na política é bem
mais complicado. Basta ver o que passamos no momento.
*Ronaldo Correia de Brito é médico e escritor.
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Veja: A poética ousada e cativante de Joana Côrtes https://bit.ly/3xdnKW8
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