A servidão do trabalho doméstico
Jorge Jatobá*
Hoje julgamos a escravidão com severidade e dela nos envergonhamos. O Brasil
foi o último país das Américas a bani-la. As gerações futuras vão nos julgar
também com rigor sobre a relação de semi-servidão que temos estabelecido com um
exército de servidores domésticos na sua quase totalidade formada de
mulheres humildes, sujeitas a longas e exaustivas jornadas de trabalho e
majoritariamente sub-remuneradas. Esse contingente de trabalhadoras facilitou e
viabilizou a formação, a dedicação e o sucesso profissional de milhões de
brasileiras(os) ao cuidar dos lares e dos filhos e filhas de seus
patrões.
Essa relação assume características de dominação econômica e social, reproduzindo na escala das classes médias contemporâneas relacionamentos típicos de regimes patriarcais onde não falta na arquitetura das casas e dos apartamentos o quarto de empregada, versão tardia da antiga senzala, usualmente o menor, mais quente e menos salubre aposento dos lares da média sociedade. Constrói-se, assim, uma segregação social que encontra espelho na estrutura ocupacional, onde a hierarquia, o preconceito e o desrespeito aos direitos humanos e trabalhistas foram banalizados pelas gerações de brasileiros e brasileiros que nasceram após a abolição da escravatura. De forma sutil, Pernambuco e de resto o Brasil, reproduziram na falsa aristocracia da classe média urbana os mecanismos de controle social e econômico típicos da antiga sociedade agrária. Não faltam a este quadro, as incorporações afetivas das empregadas ao seio da família estendida nem os frutos de relações sexualmente espúrias decorrentes das relações de dominação. Muitos brasileiros reconhecem-se neste espelho social.
Felizmente, o processo de desenvolvimento e a dinâmica do mercado de trabalho estão reduzindo a oferta e aumentando a remuneração desse grupo que a despeito dessa tendência ainda é muito significativo e crescente no conjunto da força de trabalho pernambucana. De fato, em 2010 existiam em Pernambuco 217,1 mil pessoas de dez anos e mais que tinham como trabalho principal os serviços domésticos, respondendo por 6.4% do total daquele contingente. Na Região Metropolitana do Recife, o contingente de trabalhadores domésticos cresceu 20,6% entre 2001 e 2011 e neste último ano respondia por 8,0% do total de ocupados (DIEESE), proporção menor do que a observada em 2001 (9,1%). Entretanto, o aumento da escolaridade média das mulheres, a menor fecundidade e o surgimento de novas oportunidades de emprego tem introduzido mudanças no mercado de serviços domésticos. Uma delas é que o subgrupo das que dormem na senzala é hoje praticamente inexistente.
A PNAD (IBGE, 2011) mostra que os trabalhadores domésticos em Pernambuco ganharam 55,6% a menos do que a média de todos os trabalhadores e 57,6% abaixo do que percebiam a média dos assalariados. Considerando o conjunto dos trabalhadores domésticos, a remuneração das mulheres servidoras domésticas que constitui a esmagadora maioria (94,0% em 2010,segundo o Censo do IBGE), deste contingente, representou 62,7% da remuneração dos homens também serviçais domésticos. A categoria ocupacional localiza-se na cauda da hierarquia dos rendimentos e dentro desta as mulheres estão ainda pior situadas.
Aliada aos mecanismos econômicos que geram outras oportunidades no mercado de trabalho e que contribuem para reduzir a oferta de trabalhadores domésticos, existe uma Proposta de Emenda Constitucional (N° 478/2010), conhecida como a PEC das Domésticas que estenderá a essa categoria os mesmos direitos dos trabalhadores urbanos (jornada de 44 horas por semana, adicional noturno e FGTS). Isso aumentará o custo de contratar domésticas e reduzirá a demanda. Oferta decrescente em face de alternativas melhores, mais dignas e de maior reconhecimento social, e demanda cadente, pelo maior custo, vão encolher o mercado de trabalhadoras domésticas e melhorar as condições de trabalho e de remuneração das que nele ainda permanecerem. Mercado e regulação de direitos se somam para extinguir um dos estigmas das relações de trabalho no Brasil. A classe média vai enfrentar um novo desafio e terá que mudar de atitude para viver em novos tempos onde quem quiser obter os mesmos serviços vai ter que pagar mais caro e respeitá-lo.
Publicado na Revista Algomais, Edição 84 de Março de 2013.
* Jorge
Jatobá é Economista e Sócio da CEPLAN
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