O dia da infâmia
Fernando Morais, na Folha de S. Paulo
Minha geração testemunhou o que eu acreditava ter sido o episódio mais infame da história do Congresso. Na madrugada de 2 de abril de 1964, o senador Auro de Moura Andrade declarou vaga a Presidência da República, sob o falso pretexto de que João Goulart teria deixado o país, consumando o golpe que nos levou a 21 anos de ditadura.
Minha geração testemunhou o que eu acreditava ter sido o episódio mais infame da história do Congresso. Na madrugada de 2 de abril de 1964, o senador Auro de Moura Andrade declarou vaga a Presidência da República, sob o falso pretexto de que João Goulart teria deixado o país, consumando o golpe que nos levou a 21 anos de ditadura.
Indignado, o polido deputado Tancredo Neves surpreendeu o
plenário aos gritos de “Canalha! Canalha!”.
No crepúsculo deste 2 de dezembro, um patético descendente
dos golpistas de 64 deu início ao processo de impeachment da presidente Dilma
Rousseff.
A natureza do golpe é a mesma, embora os interesses, no caso
os do deputado Eduardo Cunha, sejam ainda mais torpes. E no mesmo plenário onde
antes o avô enfrentara o usurpador, o senador Aécio Neves celebrou com os
golpistas este segundo Dia da Infâmia.
Jamais imaginei que pudéssemos chegar à lama em que o
gangsterismo de uns e o oportunismo de outros mergulharam o país. O Brasil
passou um ano emparedado entre a chantagem de Eduardo Cunha –que abusa do cargo
para escapar ao julgamento de seus delitos– e a hipocrisia da oposição, que vem
namorando o golpe desde que perdeu as eleições presidenciais para o PT, pela
quarta vez consecutiva.
Pediram uma ridícula recontagem de votos; entraram com ações
para anular a eleição; ocuparam os meios de comunicação para divulgar delações
inexistentes; compraram pareceres no balcão de juristas de ocasião e,
escondidos atrás de siglas desconhecidas, botaram seus exércitos nas ruas,
sempre magnificados nas contas da imprensa.
Nada conseguiram, a não ser tumultuar a vida política e
agravar irresponsavelmente a situação da economia, sabotando o país com suas
pautas-bomba.
Nada conseguiram por duas singelas razões: Dilma é uma
mulher honesta e o povo sabe que, mesmo com todos os problemas, a oposição foi
incapaz de apresentar um projeto de país alternativo aos avanços dos governos
Lula e Dilma.
Aos inconformados com as urnas restou o comparsa que eles
plantaram na presidência da Câmara –como se sabe, o PSDB, o DEM e o PPS votaram
em Eduardo Cunha contra o candidato do PT, Arlindo Chinaglia. Dono de
“capivara” policial mais extensa que a biografia, Cunha disparou a arma
colocada em suas mãos por Hélio Bicudo.
O triste de tudo isso é saber que o ódio de Bicudo ao PT não
vem de divergências políticas e ideológicas, mas por ter-lhe escapado das mãos
uma sinecura –ou, como ele declarou aos jornais, “um alto cargo, provavelmente
fora do país”.
Dilma não será processada por ter roubado, desviado,
mentido, acobertado ou ameaçado. Será processada porque tomou decisões para
manter em dia pagamentos de compromissos sociais, como o Bolsa Família e o
Minha Casa, Minha Vida.
O TCU viu crimes nessas decisões, embora não os visse em
atos semelhantes de outros governos. Mas é o relator das contas do governo, o
ministro Augusto Nardes, e não Dilma, que é investigado na Operação Zelotes,
junto com o sobrinho. E é o presidente do TCU, Aroldo Cedraz, e não Dilma, que
é citado na Lava Jato, junto com o filho. Todos suspeitos de tráfico de
influência. Provoca náusea, mas não surpreende.
“Claras las cosas, oscuro el chocolate”, dizem os portenhos.
Agora a linha divisória está clara. Vamos ver quem está do lado da lei, do
Estado democrático de Direito, da democracia e do respeito ao voto do povo.
E veremos quem se alia ao oportunismo, ao gangsterismo, ao
vale-tudo pelo poder. Não tenho dúvidas: a presidente Dilma sairá maior dessa
guerra, mais uma entre tantas que enfrentou, sem jamais ter se ajoelhado diante
de seus algozes.
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