Sem nada contra Dilma, a direita aposta em truques
Paulo Moreira Leite, no Brasil 247
Num país que em 1992 afastou um presidente da
República por acusações de corrupção – que mesmo assim foram rejeitadas
pelo Supremo – é instrutivo lembrar que a oposição passou o último ano em
movimentos de tentativa e erro para tentar encontrar um motivo para afastar
Dilma Rousseff do Planalto e nada encontrou.
Em dificuldade para apontar um único ato criminoso
contra a presidente – e é sintomático que nada tenha surgido após a gigantesca
devassa realizada em vários anos de Lava jato – políticos da oposição, técnicos
e ministros do Tribunal de Contas da União acumularam fantasias contábeis e
fiascos jurídicos na esperança de criminalizar decisões legítimas de todo governo,
cotidianamente desafiado a fazer opções e definir prioridades de caráter
político.
Nos últimos meses, as hipóteses mais conhecidas
foram descartadas. Não se fala mais de programas sociais que seriam sustentados
por métodos irregulares de causavam prejuízos ao Tesouro. Está demonstrado que,
pelo contrário, a conta suprimento mantida pelo Tesouro na Caixa
Econômica, instituição repassadora de recursos, gerou saldo positivo para os
contribuintes, que ultrapassou R$ 100 milhões por ano em várias ocasiões.
A denúncia de irregularidades envolvendo
empréstimos do BNDES a empresas privadas não se tornou uma questão criminal,
como se pretendia, para se tornar aquilo que sempre foi – uma disputa de
caráter acadêmico e político sobre o papel de um banco público como
indutor do desenvolvimento.
Por falta de nexo, a tese de que em 2015 Dilma
deveria ser investigada sobre supostos crimes ocorridas no primeiro
mandato – ideia que contraria definição explícita da Constituição –
acabou condenada pela maioria dos juristas do país.
Restaram os 6 decretos presidenciais que formam a
base da denúncia que Eduardo Cunha resolveu acolher no momento em que decidiu
dar curso ao processo de impeachment na esperança de salvar o próprio pescoço
pelo tumulto. Num debate cujo ponto de partida envolve defesa da ética e
da legalidade na vida pública, não se pode deixar de apontar determinadas
questões relevantes.
A denúncia se baseia em conclusões do Tribunal de
Contas da União, instituição que, apesar do nome, não tem autoridade para
julgar, inocentar ou condenar quem quer que seja. É um órgão auxiliar do
Congresso, que pode aceitar, rejeitar ou simplesmente ignorar suas conclusões,
como acontece com frequência. Isso quer dizer que, sem aval da maioria dos
parlamentares, uma denúncia do TCU pode ser -- e é -- um ótimo
instrumento de propaganda política mas seu valor legal é nulo.
Os questionamentos que alimentam a denúncia
acolhida por Eduardo Cunha foram produzidos pelo "Ministério Público
do TCU", instituição que é correto designar assim, entre aspas, pois sua
existência não é reconhecida pela Constituição brasileira. (A Carta de 1988
fala em MP Federal, dos Estados, do Meio Ambiente, Militar -- e nada de TCU).
As acusações contra a presidente têm a assinatura
do relator, Augusto Nardes. Ex-deputado, como a maioria dos colegas de plenário
que usam togas, Nardes é investigado pelo Supremo Tribunal Federal, por
envolvimento num esquema de corrupção na Receita, apurado na Operação Zelotes.
Ele sempre negou acusação. É suspeito de ter sido a autoridade -- identificada
nos arquivos do esquema como "ministro"-- que teria embolsado R$ 2,6
milhões como propina em função de um generoso desconto numa multa a ser paga
pelo grupo de comunicação RBS, do Rio Grande do Sul, seu estado natal.
Num processo que tem um ministro investigado pela
Zelotes numa das pontas, e um deputado apanhado pelo Ministério Publico da
Suíça na outra, apenas num ambiente de comédia pastelão pode-se admitir a
tentativa de criminalizar meia dúzia de decretos assinados por Dilma Rousseff,
contra quem não há um fiapo de suspeita.
Estamos falando de decretos não numerados,
categoria prevista pela administração federal desde 1991, em uso por todos os
governantes desde então. Como era de se imaginar, a falta de identificação numérica
chegou a ser usada para levantar suspeitas de caráter primário num comentarista
entrevistado pela TV Globo (a linha de raciocínio foi "se não há número é
porque estão escondendo alguma coisa").
A leitura do site do Palácio do Planalto (http://www4.planalto.gov.br/legislacao/legislacao-1/decretos-nao-numerados1#content)
mostra que os decretos não apenas são perfeitamente legais, mas tem uso
frequente na administração. Está lá, em bom português:
"Editados pelo Presidente da República,
possuem objeto concreto, específico e sem caráter normativo. Os temas mais
comuns são a abertura de créditos, a declaração de utilidade pública para fins
de desapropriação, a concessão de serviços públicos e a criação de grupos de
trabalho."
Se você clicar em 1993, governo Itamar Franco, irá
encontrar mais de 100 decretos não numerados apenas no dia 30 de dezembro
daquele ano. Normal. É nessa época que as administrações, no mundo
inteiro, procura fazer acertos contábeis no fechamento do ano. Se clicar
em 1997, Fernando Henrique, irá encontrar 18 decretos não numerados em 13 de
dezembro. Se for para o 15 de maio de 2007, irá encontrar cinco decretos no governo
Luiz Inácio Lula da Silva. E assim por diante, até chegar a 2015, com Dilma.
(Só nos primeiros três meses do ano, a presidente assinou 40 decretos
não-numerados, documento que costuma ser examinados previamente por uma dezena
de subalternos antes de chegar a seu gabinete).
Num ambiente de confusão que não contribui para um
debate onde a serenidade é inimiga de projetos políticos obscuros, é difícil
entender qual o questionamento possível aos 6 decretos. Em nenhum caso se
aponta -- nem se insinua -- qualquer fato criminoso, o que só contribui para
acentuar o caráter exótico da situação.
Em entrevista ao Globo, o procurador Julio Marcelo
de Oliveira, do TCU, responsável pela acusação, diz: "o que eu acho é que
a irregularidade existiu." Olha a palavra. Chega a ser risível quando se
associa uma "irregularidade" que o procurador acha que existiu a um
esforço para derrubar uma presidente eleita por mais de 54 milhões de votos.
É um caso infinitamente mais grave, que só pode avançar pela demonstração
de crime de responsabilidade.
Mas o termo "irregularidade", aqui, não é
uma palavra solta, nem casual. Questionado pelo repórter Vinícius Sassine, o
procurador diminui ainda mais o teor da acusação. Fala em
"hipótese de violação de leis orçamentárias." (O Globo,
4/12/015). É isso: o impeachment da hipótese.
Apesar disso, Julio Marcelo de Oliveira acredita
que o Congresso deve discutir "se a presidente deve ser afastada por
isso," num processo que leva em conta "a conjuntura nacional e o
futuro do país." Entendeu, né.
Em minha opinião, a modéstia absoluta, hipotética,
dos fatos que podem ser apontados contra a presidente ajuda a entender o
esforço para debater o assunto em clima de tumulto.
Até agora não se apontou -- tecnicamente --
uma irregularidade nos decretos não numerados. Todos envolvem operações
"de crédito, e têm "objeto concreto, específico, sem caráter
normativo."
Uma das teses favoritas contra os decretos envolve
a afirmação de que o governo autorizou gastos extras sem ouvir o Congresso.
Seria grave – desde que fosse verdade.
Em 2015, o governo cortou gastos, no maior
contingenciamento da história do país, justamente para evitar um déficit nas
contas. Foram R$ 50 bilhões, que ajudam a explicar o fundo do poço em que a
economia se encontra, meses mais tarde.
O problema é que os decretos não numerados não
criaram despesas novas -- que aí sim deveriam ser aprovadas pelo Legislativo --
mas promoveram alterações internas na distribuição de receitas. Gastos que
originalmente eram encaminhados para determinada área de um ministério, foram
deslocados para outra mas não mudaram nem poderiam mudar de pasta.
Não foram gastos novos que fizeram o déficit subir.
Foi a queda na receita.
Estes recursos deslocados é que tem sido
chamados de "gastos extras." Está errado. Mesmo receitas próprias,
obtidas em promoções e atividades que não têm relação com o orçamento, são
mantidas sob controle. Não são "extras."
Por exemplo. Uma faculdade pública, que
recebe um reforço com a realização de vestibulares ou curso fora do currículo
obrigatório pode usar os recursos obtidos dessa forma -- mas não pode gastar
mais do que foi autorizada anteriormente.
Ao contrário do que se costuma sugerir, o orçamento
federal do Estado brasileiro está submetido a um controle fiscal extremamente
rigoroso, muito menos flexível do que em outros países, inclusive Estados
Unidos. O pressuposto do Estado norte-americano é as despesas sempre serão
maiores do que as receitas. O debate politicamente relevante, ali, envolve o
limite de endividamento.
A noção de que as contas brasileiras são
manipuladas numa gastança tropical faz parte do discurso que alimenta o Estado
mínimo, mas a experiência mostra outra situação. Os controles não têm base na
vida real e podem envolver amarras artificiais, como o próprio governo Fernando
Henrique sentiu na pele. Inaugurada com pompa e circunstância como parte
do atrelamento do pais às regras do Consenso de Washington, a Lei de Responsabilidade
Fiscal não resistiu a três meses de existência para gerar um déficit que só
pode ser coberto por um truque orçamentário -- a inclusão dos saldos das
estatais na conta final de gastos e receitas, operação que evitou que o país
ficasse no vermelho já no primeiro ano da nova legislação.
Essa situação real, incompatível com a lenda que se
quer apresentar, explica a dificuldade para se responder a pergunta que
importa. Esquece o crime, que está na cara que não houve. Qual foi o erro?
Ninguém sabe.
Essa dificuldade, política, explica o uso de um
truque de linguagem. É a origem do termo "pedalada fiscal". Fala-se
de uma prática que não pode ser enquadrada administrativamente, muito menos
juridicamente. Mas pode ser usada politicamente -- desde que se crie um
ambiente favorável ao engano e à manipulação.
Leia mais sobre temas
da atualidade: http://migre.me/kMGFD
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