Não é de hoje que a Constituição Federal é apontada como geradora de
ineficiência e baixo crescimento. Já em 1988, velhos e novos tecnocratas
contrários à expansão de direitos de cidadania, como Antônio Delfim Neto e
Maílson da Nóbrega, alegavam que ela tornava o país ingovernável e incapaz de
crescer.
Por Pedro Paulo Zahluth
Bastos* e Guilherme Santos Mello**, portal Vermelho
Seu
argumento era dividido em três partes: a) a alocação obrigatória de recursos
para atendimento dos novos direitos à saúde e à educação, por exemplo,
pressionaria o orçamento e exigiria a elevação de impostos; b) os novos
impostos reduziriam a capacidade de poupar e o investimento efetivo dos
empresários, diminuindo a taxa de crescimento econômico; c) o baixo crescimento
reduziria a geração de impostos para financiar o programa “irrealista” da
Constituição de 1988. Assim, desde cedo argumentos supostamente técnicos eram
usados para questionar o pacto social consagrado pela Constituição e atacar os
direitos sociais e econômicos com a máscara da neutralidade científica.
Um
fato sobre o qual os críticos tecnocratas da Constituição Federal se calam é
que o gasto social tem um grande multiplicador fiscal, conservadoramente
estimado acima de 1,5. Ou seja, o gasto social é receita privada que estimula
novos gastos privados, estimulando a atividade econômica e gerando impostos que
podem pagar o gasto inicial (a depender da conjuntura econômica). Em qualquer
caso, este gasto estimula a economia, sobretudo se comparado a outros tipos de
gasto poupados da crítica dos economistas neoliberais. Por exemplo, o
multiplicador do pagamento de serviços da dívida pública é estimado pouco
abaixo de 0,8, dado o fato que seus portadores são, em geral, liberados de
preocupações imediatas de consumo. O ponto importante é que, enquanto o aumento
dos juros não estimula a canalização da “poupança” (ou melhor, do estoque de
riqueza acumulado por fluxos anteriores de poupança) para investimentos
produtivos, um aumento da demanda provocado pelo gasto social estimula o
aumento da produção e investimentos privados, que por sua vez aumentam a
poupança agregada e a arrecadação tributária.
Sempre
que uma crise fiscal ocorre por causa de uma crise econômica (e não o
contrário), o argumento tecnicista reaparece de diferentes maneiras. A crítica
é seletiva: a crise econômica e o desajuste fiscal cíclico são usados para
questionar determinações constitucionais para o gasto social. Curiosamente, os
mesmos críticos raramente se levantam para questionar o impacto fiscal da
“Bolsa Rentista”, associada ao fato de o Brasil ter historicamente as maiores
taxas de juros do mundo e o maior custo fiscal dada a relação dívida
pública/PIB.
O
discurso alarmista com a Constituição Federal tende a aumentar quando os
portadores de títulos públicos exigem aumento de taxas de juros e têm receio
que outros gastos possam “pressioná-los”. Quando um desajuste fiscal decorre da
desaceleração da arrecadação tributária determinada por uma desaceleração
cíclica da economia, o alarmismo é particularmente perigoso. Se este discurso
for forte o suficiente a ponto de convencer ou forçar o governo a determinar
corte de gasto público e/ou a elevação de impostos indiretos (sobre
transações), tal medida pode retrair ainda mais o gasto privado e, portanto,
trazer exatamente o desajuste fiscal e o aumento da dívida pública como
proporção do PIB que, teoricamente, a austeridade queria evitar.
É esta
lição que o bloco político e os economistas conservadores não querem tirar da
austeridade desastrosa comandada por Joaquim Levy e Nelson Barbosa durante o
segundo governo Dilma Rousseff. Ao invés de admitir que o país atravessava uma
desaceleração, mas que a política econômica pró-cíclica foi um elemento
determinante para transformá-la em uma recessão que agravou o desajuste fiscal,
afirmam que o desajuste só pode ser resolvido com mais cortes, agora sobre as
despesas constitucionais obrigatórias.
Curiosamente,
estes mesmos economistas parecem aceitar a revisão da meta de déficit fiscal
para R$ 170,5 bilhões em 2016, o que permitirá ao governo interino, se quiser,
promover uma política fiscal anticíclica no curto prazo, distribuindo emendas
parlamentares, renegociando dívidas de estados e não realizando nenhum tipo de
“ajuste fiscal” do estilo que era exigido do governo Dilma. Tal circunstância
nos faz imaginar que eram menos teoricamente ignorantes, do que politicamente
hipócritas, as censuras àqueles que, como nós, criticavam a resistência do
ministro Levy a revisar a meta fiscal irrealista em 2015.
De um
ponto de vista estrutural, a radicalidade da proposta de corte do gasto em
educação e saúde pública apresentada por Temer e Meirelles é impressionante. A
regra que impede a ampliação real do gasto público, levado a apenas acompanhar
a taxa de inflação, representa o desmonte do Estado brasileiro no longo prazo.
Obriga o governo a cortar radicalmente os dispositivos legais e constitucionais
que preveem ampliação da cobertura de bens públicos. O arranjo da Constituição
de 1988 para a saúde (SUS) e a luta para comprometer todas as esferas da
federação com ampliação dos recursos para o sistema educacional,
consubstanciada no Plano Nacional de Educação (PNE), caem por terra com uma
canetada só.
A
longo prazo, a proposta fiscal de Temer-Meirelles impede qualquer aumento do
gasto real no sistema público mesmo que a arrecadação, a economia, a população,
a sociedade e a demanda por serviços e infraestrutura pública cresçam e se
diversifiquem. Decretará a austeridade permanente para os gastos sociais e os
investimentos públicos. A previdência social, por exemplo, não poderá receber
novos aposentados sem que se corte gastos em outra área. O investimento em
infraestrutura não pode aumentar sem cortar salário real dos funcionários. O
aumento dos gastos em saúde (esperado com uma população que está envelhecendo)
provocará uma redução nos gastos em educação. Poupado será certamente o gasto
com juros, pois a regra trata do resultado primário e não do resultado nominal
(que incorpora juros) das contas públicas.
Entre
as regras anunciadas, nenhuma garante uma melhoria nas contas públicas no curto
ou médio prazo, seja do superávit primário, seja da trajetória da dívida
pública. O que fazem é criar um programa de desmonte do Estado brasileiro,
inviabilizando a melhoria e expansão dos serviços públicos, retirando do Estado
qualquer possibilidade de realizar políticas econômicas anticíclicas e
destruindo a constituição de 1988.
Se não
tiver truques contábeis e for implementado antes da recuperação firme da
economia, o programa de cortes presente na regra fiscal proposta vai manter a
economia na lona e derrubar ainda mais a arrecadação tributária. Se, por outro
lado, for realizado depois de sua recuperação, não é baixa a probabilidade de
que, dada a magnitude dos cortes previstos, joguem de novo a economia na lona.
Isso
se o programa for de fato implementado: afinal, seu anúncio deve aumentar muito
a oposição da sociedade ao governo provisório e seu programa neoliberal
radical. Muito provavelmente as jornadas coletivas de luta de trabalhadores da
saúde e da educação vão se ampliar, em conjunto com as comunidades que dependem
de serviços públicos e aqueles que lutam contra o golpe. É contra este projeto neoliberal/conservador
do governo interino, desejoso de privatizar e concentrar serviços e
infraestrutura nas mãos de uma elite acostumada com a predação do fundo
público, que se insurgem os movimentos sociais populares. O objeto da predação
é apenas o povo brasileiro mais pobre: nenhuma realidade poderia imitar melhor
o panfleto.
* Professor Associado (Livre-Docente) do
Instituto de Economia da UNICAMP.
** Professor Doutor do Instituto de Economia da UNICAMP.
** Professor Doutor do Instituto de Economia da UNICAMP.
Fonte: Plataforma Política
Social
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