20 maio 2016

Confirmação das trevas

O filme Aquarius e Mendonça Filho
Urariano Mota*
A notícia caiu não como uma bomba, que destrói vidas, paisagem e patrimônio físico. Ainda que guarde semelhança com a bomba de Hiroshima do poema de Vinícius de Moraes, a notícia não veio como a rosa radioativa, estúpida, inválida. A notícia veio como a confirmação das trevas, que cercam o Brasil do impeachment da presidenta Dilma. A notícia:
"A assessoria de Mendonça Filho, ministro da Educação e Cultura, afirmou que o MEC ainda não decidiu o que fazer com o cargo público de Kleber Mendonça Filho, diretor de Aquarius". O que isso quer dizer? Para quem não sabe, Kleber Mendonça, além de cineasta, é coordenador de cinema da Fundação Joaquim Nabuco, no Recife, que se vincula ao Ministério da Educação e Cultura. Intranquilos pelo anúncio de repressão ao digno artista, tentemos compreender essa parada contra a cultura nacional.
Comecemos pela afirmação artística. De Kleber Mendonça Filho e seu filme Aquarius, o mundo inteiro já fala, da Europa aos Estados Unidos, passando pelo Brasil que resiste à barbárie. Aquarius é saudado pela melhor crítica cinematográfica, que fala palavras como as do jornal Daily Telegraph:
"As complexidades da sociedade brasileira, com seus estratos sociais e raciais, e também a importância dos laços familiares, se transformam em uma teia de aranha para Clara e o enredo. No final, você fica feliz de estar envolvido naquilo, e sem vontade de se libertar". Ou do francês Le Monde: "o filme confirma a tendência de que ele se impõe como o mais belo de todos que vimos até agora no festival". Ou do jornal The Guardian: "o filme pode ser visto como uma metáfora do Brasil, com nepotismo, corrupção e cinismo em seus mais altos escalões. Ele é um retrato de densa observação e o retrato soberbamente interpretado de uma mulher de uma certa idade."
E do outro Mendonça, o ministro perdão pois não quero ser irônico, da Educação e da Cultura, o que vemos? Este não é um ministro cercado pela conspiração do atraso, como o vê a avançada revista Veja. Não. Ele é o próprio atraso. Não só por ideologia política, mas por ser desqualificado em absoluto para exercer a função que responde. No seu currículo observamos que foi secretário da AgriCULTURA e vice-presidente da Associação Nordestina de AviCULTURA Portanto, de cultura agrícola e de aves ele entende. Mas não do MinC, onde entrou como um centauro sem parte humana a cavalgar em gentil trote. Da sua relação com o mundo cultural, sabe-se que é genro do Marcos Vincius Vilaça, ex-presidente da Academia Brasileira de Letras. Mas genro bem distante do mundo, ora, do mundo, até do cheiro de livros. Precavido, o sogro acadêmico jamais o mencionou como referência no currículo, pois não é bobo.
Essa anúncio das trevas nos intranquiliza primeiro, depois nos enche de raiva e indignação. Ainda ontem, Fernanda Montenegro declarou que para o congresso cultura é coisa de veado. Daí me vem de imediato a lembrança do que dizia um coronel no Recife nos anos 70: "o cine de arte Coliseu é coisa de comunista e veado". Kleber Mendonça dirige o cinema da Fundação, que hoje é o nosso cinema de arte. Então estamos bem na fita da volta à repressão dos anos Médici. Em lugar da saudação em tapete vermelho, revemos um artista sofrer a perseguição daqueles anos. Bom dia, ditadura.
*Urariano Mota é autor de “Soledad no Recife”, que recupera os últimos dias de Soledad Barrett, mulher do Cabo Anselmo, entregue por ele à repressão. Escreveu ainda “O filho renegado de Deus”, primeiro lugar no Prêmio Guavira de Literatura 2014

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