Osvaldo
Bertolino, portal da Fundação Maurício Grabois
Ao
participar do ciclo de debates com o tema "Os caminhos da esquerda diante
do golpe”, realizado por professores e alunos da Universidade de São Paulo
(USP), Luiz Fernandes, dirigente do Partido Comunista do Brasil (PCdoB),
cientista político do Instituto de Relações Internacionais da PUC-Rio, ex-diretor
da Faperj, ex-secretário executivo do Ministério de Ciência e Tecnologia e
ex-presidente da Finep, classificou o golpe em curso como contrário aos ideais
da Revolução de 1930.
O tema da palestra de Luiz Fernandes foi a política internacional.
Segundo ele, o atual ministro das relações exteriores, José Serra, assumiu com
um discurso muito forte de crítica à política externa dos governos de Luis
Inácio Lula da Silva e Dilma Rousseff, caracterizando-a de ideológica e
partidarizada, um argumento falacioso. O ministro golpista falou em defesa do
“interesse nacional” e apelou para “contribuições técnicas” para definir a nova
orientação das relações exteriores, ignorando que toda política está
entrelaçada com ideologia, explicou Luiz Fernandes. “Não há política sem
ideologia”, argumentou.
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Ele prosseguiu com a explicação citando que não existe definição
política desligada de valores, de ideologias. Dizer que a política externa
adotada até aqui foi ideológica e partidarizada não significa isentá-la da
defesa do interesse nacional, afirmou. “O que está em jogo é de fato a
definição do interesse nacional”, analisou. Para Luiz Fernandes, uma coisa é a
ideologia que orienta com valores a política, outra é o contexto no qual essa
política opera. “E, a rigor, existem duas interpretações sobre a inserção do
Brasil no mundo e a realidade do século XXI, ambas ideológicas e
partidarizadas”, argumentou.
Realidade de multipolarização - A política externa dos governos Lula e Dilma
definiu que o Brasil precisava ao mesmo tempo não se afastar dos polos dominantes
do sistema de poder internacional - em particular os Estados Unidos e a Europa
– e se inserir na nova dinâmica que se formou com a ascensão dos países
emergentes. Esse seria o caminho que melhor realizaria o interesse nacional
brasileiro no contexto da globalização, de acordo com Luis Fernandes. Segundo
ele, o diagnóstico que fundamentou a política externa adotada nos últimos 13
anos aponta para o enfraquecimento dos polos centrais do sistema internacional.
Desse ponto de vista, o interesse nacional precisa estar inserido na
realidade de multipolarização. Não faz sentido o Brasil se acoplar a polos em
decadência e ignorar os polos em ascensão. A orientação estratégica que deveria
predominar é de diversificação das relações no mundo crescentemente multipolar,
avaliou. Essa não é só uma opção política e ideológica, argumentou Luis
Fernandes. Ela encerra valores. Os indicadores de poder relativo do mundo, da
evolução da política econômica internacional, avaliados a partir da Guerra
Fria, mostram um enfraquecimento objetivo das potências tradicionais, explicou.
Ele citou como exemplo a participação da China no PIB mundial, medido
por paridade de poder de compra – a medida mais efetiva de produção de riqueza
–, que já ultrapassou o dos Estados Unidos. Outro indicador: a produção
científica e tecnológica, que também passa por uma diversificação da produção
no mundo. Mais outro: a origem das principais empresas operando em áreas de
fronteira da sociedade de conhecimento, com o enfraquecimento das empresas
americanas e a ascensão de um forte polo na Índia. São indicadores objetivos de
um processo de transição que está em curso no sistema internacional, explicou
Luis Fernandes. Ele argumentou que na dimensão bélica do poder, os gastos
armamentistas, que se intensificou com a Guerra Fria, há de fato um desnível,
tendo os Estados Unidos como referência.
Dois eixos da política externa - Mas, apesar disso, mesmo apoiados nessa superioridade bélica, das cinco
guerras após a Segunda Guerra Mundial eles ganharam apenas uma, a primeira
Guerra do Golfo. Na Guerra da Coreia, na melhor das hipóteses ficou-se em um
impasse, um empate; tanto que até hoje não foi firmado acordo de paz. Na Guerra
do Vietnã foram derrotados, embora não reconheçam. Depois vieram a Guerra do
Afeganistão e a segunda Guerra do Iraque, das quais os norte-americanos tiveram
de sair sem alcançar seus objetivos. Luis Fernandes lembrou que o ex-presidente
dos Estados Unidos, George W. Bush, atacou o Iraque com a falsa acusação de que
o regime do presidente Saddam Hussein possuia armas de destruição em massa, o
que justificaria uma guerra global contra o terror, transformando os
territórios do Iraque e da Síria em campos de cultivo de grupos terroristas.
É nesse contexto que se deve situar a política externa desenvolvida nos
últimos 13 anos, de acordo com Luis Fernandes. Segundo ele, existem duas
iniciativas que foram fundamentais nesse sentido, dois eixos da política
externa brasileira. O primeiro é o processo de integração sul-americana, com o
Mercosul e a Unasul, ajudado pela viragem progressista ocorrida em boa parte do
continente. Tratava-se de uma agenda de integração política e econômica. E que
se pretendia também militar, com o Conselho de Defesa da Unsaul. Esse processo
teve sua materialidade econômica nos investimentos na integração física da
América do Sul, com seu núcleo formado por grandes empresas de construção
pesada brasileiras.
O segundo eixo foi a aproximação com os BRICS (Brasil, Rússia, Índia e
África do Sul), entendidos como expressão dos novos polos em ascensão, que casa
com a política de defesa brasileira, com uma estratégia de dissuasão, que
implica política assimétrica em posição de inferioridade, orientada para a
preservação da soberania brasileira e sul-americana sobre a Amazônia e a
Amazônia Azul, sobretudo a partir da descoberta do pré-sal.
Velocidades diferentes - A orientação era de preservar a capacidade dissuasória contra qualquer
agressão, explicou Luis Fernandes, lembrando que a perda de poder relativo dos
polos dominantes tem resultado numa crescente tendência à ação unilateral e
coercitiva dos Estados Unidos. Isso se traduziu, de acordo com ele, na ofensiva
no Oriente Médio, na Guerra da Líbia e na anunciada invasão da Síria, abortada
por uma reação firme, diplomática e militar, da Rússia. Se traduziu também na
promoção ativa de golpes de Estado na Ucrânia e no Egito. A política externa
norte-americana não pode dizer que ela é golpista porque a lei não permite
ajuda militar a golpistas, mas é assim que eles têm agido.
Segundo Luis Fernandes, o golpe brasileiro deve ser inserido nesses
acontecimentos. Em primeiro lugar, é preciso considerar que essa prática esteve
presente em Honduras e no Paraguai. A América Latina foi identificada como o
elo mais frágil desses movimentos contra-hegemônicos na evolução do sistema de
poder internacional. Há também ações de desestabilização na Venezuela, na
Bolívia e no Equador. Com a possível exceção do Uruguai, a viragem à esquerda
da região seu deu com figuras carismática à frente; a destruição das suas reputações
compõe a estratégia golpista, de acordo com Luis Fernandes. Há ainda a política
de isolamento da China, particularmente com a presença da 7ª Frota
norte-americana em suas fronteiras e o Tratado Transpacífico, que tenta isolar
o gigante socialista no comércio internacional.
Luis Fernandes avaliou que nos BRICS existem velocidades diferentes, com
a China em primeiro lugar, com uma estratégia nacional de desenvolvimento muito
mais sólida. A Índia também evolui numa velocidade maior, assim como a Rússia.
Brasil e África do Sul estão num patamar mais claudicante. O gigante
sul-americano foi identificado como elo mais frágil dessa cadeia. Segundo ele,
com um governo liderado pela esquerda, em um Estado que não perdeu sua natureza
de classe, o golpe se instalou por dentro do sistema de poder. O papel do
Judiciário na ruptura democrática mostra o caráter de classe do Estado. Mesmo
no âmbito da política se vê aspectos desenvolvimentistas convivendo com a
persistência de áreas do Estado dominadas por circuitos financeiros.
Polo de financiamento público - Luiz Fernandes concluiu dizendo que é assustador a agressividade da
agenda que o governo interino está tentando impor. Ele disse que os golpistas
não foram nem um pouco cautelosos e anunciaram uma agenda
contrarrevulicionária. Não porque os governos de Lula e Dilma foram
revolucionários; ele se referiu à Revolução de 1930. E explicou que os
golpistas anunciam medidas contra a Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) e a
Previdência Social, que representam a negação do Estado Social. A Seguridade
Social passa a ser tratada no âmbito do Ministério da Fazenda, um retrocesso
dos princípios consagrados na Constituição de 1988.
Citou também o desmonte do polo de financiamento público para o
desenvolvimento nacional. Retiraram recursos que subsidiam a TJLP (Taxa de Juro
de Longo Prazo) do BNDES, liquidando a capacidade de financiamento de longo
prazo para se estruturar o desenvolvimento nacional. O fim do Fundo Soberano
também faz parte dessa política de desmonte do polo do financiamento público, assim
como o ataque às empresas capazes de alavancar investimentos em infraestrutura
nacional, inviabilizadas pela ofensiva que vem no curso da ação golpista a
partir da “Operação Lava Jato”.
A engenharia nacional de construção civil é fruto da Revolução de 1930,
segundo Luis Fernandes. Elas foram constituídas a partir da existência de um
esforço de desenvolvimento nacional com financiamento público. É isso que está
sendo desmontado, argumentou. Não se trata apenas da deposição do governo
Dilma. Trata-se do desmonte de um projeto de desenvolvimento. “Vamos viver as
contradições desse processo agora”, disse ele, explicando que a aplicação dessa
agenda conservadora logo explicitará contradições econômicas, sociais e
políticas, que vai ampliar a margem de manobra para a resistência democrática.
“Essa é a gravidade do processo que está em curso. A nossa luta é dura porque
profunda. Não se trata só da preservação do princípio da soberania popular, que
é muito importante, de defesa de um governo eleito democraticamente, mas, mais
do que isso, de combate a um projeto que está sendo implementado. É necessário
explorar todas as contradições para derrota-lo”, concluiu.
Iniciativas estratégicas - Além de Luis Fernandes, participaram da mesa, mediada por Jean Tible,
doutor em Sociologia (Unicamp), professor de relações internacionais (Fundação
Santo André), Reginaldo Nasser, professor de Relações Internacionais (PUC SP) e
do programa de pós-graduação San Tiago Dantas, e Maurício Mecri.
Nasser comentou o papel do oligopólio da mídia, argumentando que a
ideologia do movimento conservador norte-americano Tea Party passou a
ter influência no Brasil. Segundo ele, ao longo dos governos Lula e Dilma houve
uma progressiva implementação de instituições, de pessoas e de grupos de
direita claramente influenciados pelo neoconservadorismo americano, um perfil
diferente da direita tradicional. Um sinal importante desse fenômeno é o Instituto
Millenium, com fortes ramificações midiáticas. Toda a articulação
internacional dessa direita, de acordo com ele, se deu como decorrência da
presença marcante do Brasil no cenário mundial, representando um projeto
político muito importante para a América Latina e a África. O Brasil era uma
simbologia desses países emergentes.
Maurício Mecri argumentou que o Brasil tomou algumas iniciativas
estratégicas no contexto mundial de ofensiva dos Estados Unidos e Europa contra
os BRICS, em especial com seus dois principais integrantes: China e Rússia.
Foram ações brasileiras em áreas sensíveis do jogo de poder internacional, com
destaque para o Plano Nacional de Defesa. Segundo ele, o Brasil definiu como
prioridade sua defesa estratégica, que envolve a América do Sul, o Atlântico
Sul e a parte ocidental da África, como espaço de influência e projeção, e a
redefinição da agenda de segurança e defesa nacional.
Ao redefinir sua política de defesa, o Brasil criou um antagonismo na
geopolítica como principal país desse sistema, de acordo com Mecri. Antagonismo
com a principal potência do planeta. O pré-sal, uma nova fronteira de
exploração do petróleo, com uma legislação específica, é parte destacada desse
jogo. Para ele, o discurso de combate à “corrupção” tem sentido geopolítico,
parte do esquema para tirar do Brasil os instrumentos de soberania nacional. A
dinâmica do golpe se dá com a perseguição das lideranças que têm conduzido esse
processo, em conluio com os aparelhos do Estado com alguma conexão com a
projeção brasileira no cenário mundial, relativamente nem sucedida.
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