Crise que
machuca a economia é, sobretudo, de inteligência
Bolsonaro, Guedes e seus
‘seguidores’ empenham-se na desconstrução do arcabouço institucional que
sustentou o desenvolvimento do País
Luiz Gonzaga Belluzzo, Carta Capital
Ao investigar as razões do
desenvolvimento asiático, os autores mais inclinados à análise histórica e
institucional concentraram a atenção nas seguintes questões: 1. A natureza e
relevância das políticas industriais (e de constituição de grandes grupos nacionais),
sempre amparadas no direcionamento do crédito e nas taxas de câmbio reais
“competitivas”. 2. A importância dos acordos implícitos e das relações de
“cooperação” e “reciprocidade” entre o Estado e grupos privados. 3. A forma da
inserção internacional.
Os
estudos cuidaram de sublinhar as relações peculiares entre os Estados
Nacionais, os sistemas empresariais e a “inserção internacional”. Procuraram
chamar atenção para a especificidade da “organização capitalista”, em que
prevaleceram: 1. Nexos “cooperativos” e de reciprocidade nas relações
capital-trabalho. 2. Negociações entre os grandes conglomerados e seus
fornecedores. 3. Íntima articulação entre os bancos e a grande empresa
nacional. 4. “Administração estratégica” do comércio exterior e do investimento
estrangeiro.
Essa
arquitetura institucional não só assegurou excepcionais taxas de investimento e
de acumulação de capital como ensejou programas de “graduação” tecnológica.
Esse arranjo garantiu, assim, expressivos ganhos de produtividade e, consequentemente,
consolidou a posição competitiva dos grandes grupos nacionais (sim, os
“campeões”, senhoras e senhores) diante dos rivais e concorrentes no mercado
internacional.
A
partir das reformas do fim dos anos 70 do século passado, a China irrompeu no
cenário asiático com uma receita um tanto modificada. O novo protagonista
apoiou-se na combinação entre uma novidade, ou seja, a atração de investimentos
diretos estrangeiros e, uma tradição, isto é, a forte intervenção do Estado na
finança e no comércio exterior, com o propósito de sustentar uma agressiva
estratégia exportadora e de crescimento acelerado. A ação estatal cuidou,
ademais, dos investimentos em infraestrutura e utilizou as empresas públicas
como plataformas destinadas a apoiar a constituição de grandes conglomerados
industriais preparados para a batalha da concorrência global.
Os
sistemas financeiros que ajudaram a erguer os países asiáticos eram
relativamente “primitivos” e especializados no abastecimento de crédito
subsidiado e barato às empresas e aos setores “escolhidos” como prioritários
pelas políticas industriais. O circuito virtuoso ia do financiamento para o
investimento, do investimento para a produtividade, da produtividade para as
exportações, daí para os lucros e dos lucros para a liquidação da dívida.
Na
China, as elevadas taxas de poupança registradas nas contas nacionais resultam,
sobretudo, dos lucros retidos pelas empresas e do crescimento da renda das
famílias. As “poupanças” brotam do circuito virtuoso: expansão do crédito
comandada pelos bancos públicos, conexão entre o investimento das empresas
estatais e privadas, aumento da produtividade e das exportações líquidas,
elevação dos lucros e dos rendimentos agregados.
Os chineses cuidaram de reforçar a centralidade da
“organização capitalista” em que prevalecem nexos, digamos, “cooperativos” nas
relações entre empresas e burocracias civis, militares e de segurança
encarregadas de fomentar e administrar o sistema de avanço tecnológico. É
crucial a presença dos bancos públicos no provimento de crédito para permitir a
apropriação da tecnologia, mediante a utilização das empresas estatais para a
formação de joint ventures com o capital estrangeiro, e promover a
“administração estratégica” do comércio exterior. Essa arquitetura institucional
não apenas assegurou excepcionais taxas de investimento e acumulação de capital
como também ensejou programas de “graduação” tecnológica.
A
crise que hoje machuca a economia brasileira é, sobretudo, uma crise de
inteligência estratégica. Bolsonaro, Paulo Guedes e seus “seguidores”, dentro e
fora do governo, empenham-se na desconstrução do arcabouço institucional que
sustentou o desenvolvimento do País ao longo de cinco décadas. Desde os anos 30
do século passado, a trajetória da nossa economia confirma que a coordenação do
Estado é crucial para a obtenção de taxas de crescimento elevadas.
Os
dados de Rodrigo Orair demonstram claramente o protagonismo do investimento
público no longo ciclo de expansão entre 1950 e 1979. Não por acaso, as taxas
de crescimento do período suplantam significativamente aquelas obtidas na
etapas recentes.
O Brasil ocupava, então, a liderança no torneio mundial do
crescimento amparado em um processo de industrialização que avançou para dotar
o País de uma estrutura produtiva diversificada e moderna. Pindorama era a
nação mais industrializada entre os ditos “emergentes”.
Descontada
a década perdida dos anos 1980, submetida às agruras da crise da dívida
externa, o desenvolvimento posterior foi modesto. O primeiro ciclo, o dos anos
1990, moveu-se no território do baixo dinamismo e da regressão da estrutura
industrial. Esvaiu-se no colapso cambial de 1999. O segundo ciclo, apoiado no
projeto de inclusão social e expansão do mercado interno, foi sustentado pelos
preços das commodities,
mas fragilizado pela valorização cambial. Sobreviveu bravamente à crise global
de 2008. Perdeu forças nos anos que antecederam à crise de 2015, deflagrada
pelo ajuste reclamado pela turma da bufunfa e executado pela dupla
Rousseff-Levy.
Desde
então, o debate brasileiro trilhou os caminhos das simplificações binárias.
Inspirados no filme Querida, Encolhi as Crianças, não são poucos aqueles que recomendam “encolher o
Estado”. Cortar, desmobilizar e privatizar são os verbos mais conjugados nos
gabinetes dos palácios e da finança. A secretaria que cuida das Privatizações
ostenta também a alcunha de Desinvestimentos.
Vamos olhar para a frente: a integração às
cadeias globais vai certamente exigir políticas distintas daquelas executadas
nos anos do nacional-desenvolvimentismo. A ênfase, agora, deve ser colocada na
busca da construção de vantagens dinâmicas apoiadas em programas de inovação,
sobretudo os articulados ao agronegócio, às novas fontes de energia, à
infraestrutura e às grandes demandas sociais, como educação, saúde, mobilidade
urbana e segurança.
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