02 junho 2019

Futebol na essência


Os craques não podem perder a liberdade de inovar e surpreender

Tostão, na Folha de S. Paulo


Obviamente, nenhum craque, nem um Pelé, deveria ter privilégios, dentro ou fora de campo, em clubes ou em seleções.
É essencial que o grande jogador também participe da parte tática e que tenha funções definidas. Por outro lado, uma das atribuições de um bom técnico é dar condições a todos os atletas, especialmente aos melhores, de jogar no máximo de suas possibilidades individuais.
Não há contradições entre o individual e o coletivo. Um precisa do outro. Os craques não podem perder a liberdade de inovar, transgredir, surpreender.
O genial Romário, em uma mistura de sabedoria e malandragem, só queria treinar o que faria no jogo.
Enquanto os outros corriam em volta do campo e participavam de ações coletivas, ele, com a ajuda de um goleiro, treinava finalizações, de todos os jeitos, e imaginava o que faria nas partidas.
Eu, que não era um Romário, sem nenhuma falsa modéstia, quando jogava no juvenil do América recebi a seguinte orientação do técnico Biju: "Treine bastante com todos, mas, se quiser ser um craque, trabalhe também separadamente e pratique o que sabe fazer bem, para ser ainda melhor".
Por minha experiência de atleta e de comentarista, tenho a impressão que muitos treinadores atuais, desde as categorias de base, empolgados com os avanços da ciência esportiva e das estratégias, se esqueçam de orientar os jogadores individualmente, para ajudá-los a atuar ainda melhor e a se posicionar corretamente. Ensinar não é apenas treinar.
A obsessão pelo coletivo, em detrimento do individual —​as duas coisas têm de andar juntas—​ fez com que, durante décadas, desaparecessem os meio-campistas de grande talento, organizadores, pensadores, já que o meio-campo foi dividido entre os volantes que marcam e os meias ofensivos que atacam. A transição da bola, da defesa para o ataque, passou a ser feita muito mais pelos chutões e pelos avanços dos laterais.
Isso tem mudado, lentamente. Vejo, neste momento, positivamente, que muitos treinadores brasileiros têm procurado jogar um futebol de posse de bola e de troca de passes da defesa para o ataque, embora o time mais eficiente seja o Palmeiras, que tem um jogo muito mais direto em direção ao gol. Há várias maneiras de atuar bem e de vencer. Além disso, o Palmeiras, de seu jeito, tem momentos também belíssimos.
Tite e a comissão técnica da seleção têm sido muito criticados por darem privilégios a Neymar, fora de campo, e por deixá-lo fazer o que quiser durante as partidas. Não vejo assim. Isso pode ocorrer no PSG. O que Tite precisa melhorar é dar condições para que Neymar, por meio de viradas rápidas de jogo e de seu posicionamento correto, receba a bola mais perto do gol, sem uma dupla de marcação, para que tenha condições de brilhar individualmente.
Tite e a comissão técnica precisam ser rigorosos com Neymar, quando ele dribla demais no momento errado, quando simula e quando dá socos em torcedores.

A ALMA TAMBÉM GANHA - O Liverpool é campeão da Europa. Quando Klopp assumiu o comando, perguntaram quem ele seria, já que Mourinho era um "Special One". Klopp respondeu: "Normal One". Foi mais que especial. O técnico, por já ter sido duas vezes vice-campeão da Europa e pela competência e simpatia, mereceu o título. Além de suas qualidades técnicas e táticas, ele demonstrou que se ganha também com o coração, com a alma transbordando de emoção.

[Ilustração: Juliane Mercante]

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