Povo na rua: o óleo
que move a democracia
Thiago Modenesi
Muito se engana quem acha que por termos sido o
único país da América a construir a Independência sem uma revolução somos um
povo passivo ou manso. A proclamação de nossa República foi antecedida por um
processo longo de mobilizações que levaram à Lei do Sexagenário, à Lei do
Ventre Livre, à Lei Eusébio de Queiroz e, por fim, à Lei Áurea, assinada pela
princesa Isabel com um palácio cercado de manifestantes.
Por aqui, em terras tupiniquins, é assim há séculos.
Foi assim que nós, brasileiros, entramos na Segunda Guerra ao lado de Estados
Unidos, Reino Unido e União Soviética: fruto de muita pressão popular, gente
nas ruas do Rio de Janeiro pedindo por isso, se mobilizando, pressionando um
vacilante Getúlio. Isso para não falar
das várias e várias revoltas que marcam nossa história: Cabanagem, Sabinada,
Balaiada e por aí vai...
Nosso DNA, o amálgama que forma os brasileiros,
entendeu faz muito tempo que o que é importante se conquista nas ruas. O
sistema não presenteia, não registra e nem concede benefícios que não sejam
fruto de muita mobilização, protestos, greves e passeatas. No geral, o fato
social vem antes da Lei - esta é fruto das lutas e mobilizações de um povo, não
um presente dos que detém o poder.
Essa História foi narrada centenas de vezes em
nosso território, em todos os estados da federação. Exemplos e mais exemplos
não faltam. No governo João Goulart o povo foi às ruas para buscar garantir as
reformas de base propaladas pelo presidente. Havia entendimento da população
que apenas assim poderia dar certo, era necessário óleo no motor da democracia
para fazê-la girar.
Esse motor travou na década de 60 do século XX,
passamos 21 anos sob uma ditadura militar dura, violenta e desumana, mas ainda
assim o povo foi às ruas, fez passeatas e colocou 100 mil pessoas na avenida
durante um regime desses! Estudantes fizeram congressos, organizou-se
resistência e, apenas assim, foi possível a volta da democracia. A pressão do
óleo fez novamente o motor girar e olha que era um motor que estava todo
enferrujado, refém de um regime de exclusão.
As Diretas foram puro povo na rua, na busca pela
aprovação da emenda Dante de Oliveira (que, se aprovada, garantiria a volta de
eleições livres), na derrota dessa no Congresso Nacional. As ruas se forraram
por Tancredo e depois por Lula, Brizola, Gabeira, Covas, Ulisses e outros em
1989, na nossa primeira eleição direta pós-ditadura.
Veio o impeachment de Collor, mais uma vez só
possível porque os jovens brasileiros pintaram as caras, tomaram avenidas,
gritaram e protestaram, Collor caiu. Se não fosse pela brava juventude
brasileira hoje não teríamos estatais, eles que protestaram e enfrentaram
cassetetes durante os governos de FHC para impedir as privatizações, que voltam
e voltam e voltam às ruas para defender o ensino, o país, a democracia.
Gerações e gerações de jovens que se doam para que seus filhos tenham um futuro
melhor.
O povo esteve nas ruas nos governos de Lula e
Dilma também, apoiando e criticando, lutando para garantir mais conquistas,
mais direitos e mais democracia e o que antes tinha sido um radiar democrático
com o impedimento de Collor, se tornou o começo de um anoitecer sem fim com o
impeachment de Dilma. Mesmo com o país dividido o rito foi executado, um trauma
irreparável que não conseguiu até hoje ser superado pela democracia brasileira.
Hoje, em meio a uma pandemia, assistimos mais
uma vez o povo na rua: torcidas organizadas, anarquistas, gente de direita e de
esquerda, preferem se expor ao vírus do que à perda da democracia, ao aumento
dos preconceitos e ao desmonte do Estado. Quando alguns perguntam e se
preocupam com a violência excessiva de um ou outro nos atos - um pingo que
destoa no mar de gente bem intencionada que vai enchendo mais e mais nossas
avenidas - é sempre bom lembrar da violência com que os que detém
momentaneamente o poder rasgam a Constituição, ameaçam o Supremo Tribunal
Federal, propõem um novo AI-5, sugerem o fechamento do Congresso, incentivam o
ataque a gays, lésbicas, negros e todos os demais que pensam diferente e por aí
vai.
Democracia é pluralidade, o juízo da democracia
é a voz rouca das ruas, a voz do povo. Alguns se iludiram por momentos que
poderiam dirigir uma democracia de um país continental como o Brasil dos seus
sofás, tomando um vinho e teclando em seu iPhone por suas redes sociais. A
ilusão acabou, o povo suado, que grita pelo que defende, que se exalta, se
emociona e luta pelo que acredita se expondo ao sol, ao frio, à chuva e à Covid,
voltou. A democracia e o Brasil agradecem, esses sim são os verdadeiros
patriotas.
Em que pese a pandemia, no momento tenso e
perigoso que se encontra o mundo, criando um contexto que não é o ideal estar
nas ruas devido a todos os riscos que isso implica e o respeito à quarentena que
os próprios setores responsáveis da nação defendem. Mas esse momento chegará,
essa batalha não será vencida só nas redes, seara que já vai virando em favor
da democracia, mas também nas ruas.
*Thiago
Modenesi é professor
Crise
sem fim envolve o governo https://bit.ly/2ArYe6Y
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