GARIMPANDO COM O COCAR ALHEIO
Pedidos de autorização para
garimpo em território indigena batem recorde em 2021 – todos feitos por não
indígenas
MARTA SALOMON, revista Piauí
Ao inaugurar a reforma
de uma ponte próxima à Terra Indígena Balaio e à maior jazida de nióbio do
mundo, nos últimos dias de maio, o presidente Jair Bolsonaro vestiu um cocar
pela segunda vez em seu mandato. “Não é fácil você mudar: décadas de trabalho
contra vocês, de emaranhado de leis que não permitem que vocês possam
progredir”, discursou no Amazonas. Fazia quase um ano e quatro meses que
Bolsonaro havia enviado ao Congresso projeto de lei que regulamenta a
exploração mineral em terras indígenas, uma exigência da Constituição para
liberar a atividade, considerada ilegal. Desde então, vêm batendo recordes os
pedidos de pesquisa e de permissão de lavra garimpeira que chegam à Agência
Nacional de Mineração. Àquela altura, pedidos apresentados desde a posse de
Bolsonaro se estendiam sobre 13,3 mil km2 de terras indígenas e seus entornos, área equivalente a
quase nove vezes a cidade de São Paulo.
Apenas nos primeiros quatro meses de 2021, os processos minerários registrados na ANM que solicitam permissão para garimpo ou pesquisa em áreas indígenas somam 4,3 mil km2, mais do que o primeiro ano inteiro de mandato de Bolsonaro – eleito prometendo “nem um centímetro a mais para as terras indígenas”. Na escala seguinte da mesma viagem ao Amazonas em que vestiu o cocar, Bolsonaro voltou a defender que a mineração nessas áreas era uma “demanda dos índios”, embora não haja sinal de nenhuma cooperativa indígena nos registros da agência reguladora.
A suposição de que os índios são os
maiores interessados na mineração em seus territórios une mineradoras e
cooperativas que entraram com pedidos na ANM, na expectativa de regulamentação
da atividade. O maior argumento é que, para combater a mineração ilegal, o
caminho é legalizar a extração de minérios em terras indígenas. A Associação
Nacional do Ouro (Anoro), que reúne garimpeiros e as entidades financeiras que
comercializam o mais procurado dos minérios nas terras indígenas, reconhece que
o interesse é mais amplo: “Quando comparamos as demarcações de terras indígenas
na Amazônia Legal com os mapas geológicos da CPRM (Companhia de Pesquisa de
Recursos Minerais), identificamos que as reservas indígenas estão sobre os
maiores potenciais minerais do Brasil. Por isso, o desenvolvimento equilibrado
do setor mineral das terras indígenas interessa a todo o país.”
A regulamentação da mineração em terra
indígena foi proposta ao Congresso por Bolsonaro no projeto de lei 191, com
tramitação parada na Câmara dos Deputados desde fevereiro de 2020, apesar do
pedido de urgência do presidente. Caso seja aprovado da forma como foi proposto
por Bolsonaro, permitirá a exploração de minérios e de recursos hídricos para
geração de energia em terras indígenas mesmo sem aval das comunidades. O artigo
14 do projeto diz que compete ao presidente da República encaminhar ao
Congresso Nacional pedido de autorização para as atividades mesmo com
manifestação contrária dos indígenas.
Anovata Cooperativa dos Mineradores do Vale do Guaporé, em Mato Grosso, lidera o ranking em área de exploração de lavra garimpeira pleiteada ao órgão regulador durante o governo Bolsonaro: quase 352 mil hectares (3,5 mil km2) para explorar ouro sobretudo na Terra Indígena Aripuanã e seu entorno, além de um pedido de garimpo de diamante na TI Zoró, também em Mato Grosso. Aberta em março de 2020 por dois ex-funcionários da prefeitura de Conquista D’Oeste (MT), a cooperativa registrou na Receita Federal um endereço inexistente e ainda não conta com nenhuma lavra ativa fora de terras indígenas.
O diretor da Guaporé Mineração, nome de
fantasia da cooperativa, Ezequiel Alves, diz tratar-se de um projeto ambicioso.
“Hoje somos a maior cooperativa em requerimentos de lavra garimpeira, são 360
requerimentos, que somam 2 milhões de hectares, é um investimento que dará
retorno”, disse à piauí. “Defendo com unhas e dentes o PL 191 desde que
não seja para as mineradoras multinacionais explorarem as terras indígenas”,
completou.
A Patium Beneficiamento de Minérios aparece
em segundo lugar nesse ranking. A empresa foi vendida em março de 2021 pelo
Grupo Recursos Minerais do Brasil à Serra Morena Mineração. “Ressaltamos que
antes de solicitar esses referidos requerimentos, a empresa manteve contato com
lideranças indígenas que, na ocasião, manifestaram interesse em receber um
empreendimento de mineração em seus territórios. Esse foi um dos fatores
considerados para que, à época, a empresa fizesse os referidos requerimentos de
pesquisa”, informou em nota o grupo RMB. Os requerimentos somam quase 136 mil
hectares (1.360 km2) para a exploração de minério de manganês nas
terras indígenas Kayapó, Las Casas e Badjonkore, no Pará.
A 3Maria Mineração aparece na sequência no
ranking por extensão de área requerida à Agência Nacional de Mineração. A
mineradora fez requerimentos de pesquisa para a exploração de manganês e
estanho em terras indígenas em Mato Grosso e em Rondônia. O dono da empresa,
Rodrigo Galvão Diniz, está otimista com a perspectiva de aprovação do projeto
de lei 191 no Congresso, embora o presidente da Câmara, Arthur Lira, não faça
previsão de data para a votação.
“Os indígenas Cinta Larga vêm procurar a
gente para tirar o minério, eles querem renda”, sustenta, repetindo o argumento
frequente dos lobistas da mineração em terras indígenas. Diniz insiste também
em outro argumento comum aos lobistas da mineração, segundo o qual o dano
ambiental da mineração não seria tão grande se a atividade vier a ser
regulamentada. “Os mineradores são os que degradam menos a área que exploram,
só naquele lugarzinho ali, quem acaba com a floresta são os fazendeiros e o
agronegócio.”
Não é desprezível o estrago da mineração na
floresta, no entanto. O sistema de alertas de desmatamento do Instituto
Nacional de Pesquisas Espaciais atribui à mineração o desmatamento de 277 km2 na
Amazônia Legal desde 2019. O ritmo registrado nesses 29 meses e meio é 37%
maior do que o desmatamento atribuído à mineração nos quatro anos anteriores,
desde 2015. Grande parte do desmatamento registrado pelo Inpe decorre do
garimpo ilegal em áreas protegidas, como as terras indígenas, sem licença
ambiental nem autorização da ANM. Nas terras indígenas da Amazônia, o
desmatamento superou 925 km2 em 2019 e 2020, também segundo dados do
Inpe, num ritmo jamais visto desde 2008, quando o instituto passou a medir a
perda de floresta nessas áreas.
Qualquer pessoa física ou empresa pode requerer pesquisa mineral ou lavra garimpeira no Brasil. Para os requerimentos de pesquisa, a ANM cobra taxa anual de 1.012 reais. Os requerimentos de lavra garimpeira custam 204,13 reais. Esse é o valor que desembolsaram os pretendentes a minerar terras indígenas, mesmo sem saber se o Congresso Nacional vai autorizar a exploração de minérios nesses territórios ou mesmo se os atuais requerentes terão alguma vantagem sobre as áreas que pleiteiam. “A Constituição Federal estabelece que o Congresso Nacional tem de autorizar por meio de uma nova legislação a mineração em terras indígenas, e ninguém sabe o que vai sair do Congresso, se os atuais requerentes terão ou não direito sobre esses processos. É impossível saber o que a nova legislação vai estabelecer”, explicou a agência reguladora também com base na Lei de Acesso à Informação.
Ainda de acordo com a ANM, encontram-se
“sobrestados” todos os processos minerários em terras indígenas desde 1988,
data em que a Constituição passou a exigir uma lei para regulamentar a
mineração nesses territórios. A agência registra cerca de 3.700 processos
nessas condições, registrados desde 1941; parte deles, anterior à Constituição,
foi suspensa pela homologação das terras indígenas a que os processos se
sobrepunham. Nos 80 anos de registros da ANM, só outros sete anos registraram
volume maior de área requerida que os anos de governo Bolsonaro.
A Terra Indígena Yanomami, localizada nos
estados de Roraima e Amazonas, na fronteira com a Venezuela, tem o maior número
de pedidos de mineração, de quarenta minérios diferentes. Estima-se a presença
de 21 mil garimpeiros no território, atuando ilegalmente. A Mineração Silvana
Indústria e Comércio Ltda. lidera o ranking da ANM entre todos os processos
minerários registrados em terra indígena e não respondeu aos pedidos de
entrevista. A novata Cooperativa dos Mineradores do Vale do Guaporé já aparece
em sexto lugar nesse ranking, atrás da Vale S.A., que aparece em quarto lugar.
No governo Bolsonaro, as terras indígenas
Parque do Aripuanã, em Mato Grosso e Rondônia, Kayapó, no Pará, e Aripuanã, em
Mato Grosso, registram as maiores áreas requeridas por garimpeiros e
mineradores, consideradas também as margens de 10 km nos arredores desses
territórios. O ouro é o minério mais procurado, de acordo com os registros da
agência, bem mais do que manganês, diamante, cobre, estanho e cassiterita, por
exemplo.
Representante das mineradoras, o Instituto
Brasileiro de Mineração (Ibram) avalia que ainda não é possível especular sobre
o potencial de mineração em terras indígenas. “Um ponto importante é que, sem a
regulamentação, não se pode estabelecer o necessário e estratégico conhecimento
geológico do que há no subsolo de cerca de 13% do território nacional, que se
encontra demarcado. O IBRAM defende que a mineração industrial pode e deve ser
viabilizada em qualquer parte do território brasileiro”, afirmou a entidade em
nota.
Pouco mais de dois meses antes de ir ao Amazonas e vestir um cocar, Jair Bolsonaro recebeu em audiência no Palácio do Planalto caciques de três aldeias Kayapó (Gorotire, Moidjam e Kikretum), o presidente da Associação Cacique Coronel Tuto Pombo, Niti Kayapó, o presidente da Câmara Comércio Brasil-Índia, Roberto Paranhos do Rio Branco, e o empresário João Sidnei Gessi, além dos generais palacianos Luiz Eduardo Ramos e Augusto Heleno e o presidente da Funai, Marcelo Xavier.
Ao final do encontro, Bolsonaro gravou um
vídeo destinado ao amigo, ex-deputado e cantor Sérgio Reis, que integraria o
grupo favorável ao garimpo na terra indígena Kayapó. O grupo recebido pelo
presidente havia participado da criação de uma cooperativa Kayapó em 2018,
segundo Reis “para desmascarar as ONGs”. “Nossos irmãos indígenas querem e têm
o direito de serem tratados como nós e mais ainda, que suas terras sejam usadas
para o bem deles e do Brasil, por exemplo para a agricultura, pecuária,
exploração mineral, recursos hídricos”, disse o presidente, no vídeo, a Reis.
Em programa de televisão, pouco antes de Bolsonaro enviar o projeto ao
Congresso, o cantor mencionou a criação da cooperativa: “Estamos fazendo com
que o índio brasileiro tenha a vida que ele merece. Estão sentados em cima de
uma fortuna que todo mundo quer. O Bolsonaro falou que o índio tem de viver
como o índio americano. É um índio que quer vencer.”
O ex-madeireiro e empresário João Gessi
também gravou um vídeo após a reunião no Planalto, em que estimula indígenas a
pressionarem o Congresso a votar o projeto de lei 191. À piauí,
ele afirmou: “Estamos numa guerra, e pode ter certeza de que vamos ganhar.” No
final de abril, foi criada pelo mesmo grupo a Cooperativa Indígena
Agroindustrial e Florestal Totoi Kayapó, a COOPTOTOI, cujo estatuto não
menciona mais, como na primeira cooperativa criada, a exploração de minérios. O
objetivo, porém, não foi abandonado. O próprio Gessi explica o porquê: “Os
kayapós têm 12,6 milhões de hectares da maior província mineral do planeta, uma
Bélgica e uma Holanda juntas.”
Enquanto os pedidos de pesquisa e lavra em terras indígenas avançavam para um novo recorde em 2021, ao se aproximar em quatro meses de toda a área reivindicada em 2020, Brasília acolheu duas manifestações de indígenas. Em 20 de abril, cerca de cinquenta indígenas mundurukus, da Associação Indígena Pusuru, do Pará, levaram à Praça dos Três Poderes faixas de apoio ao projeto que regulamenta a exploração mineral em terras indígenas, contra a presença de ONGs e em apoio a Bolsonaro. A mobilização para o deslocamento dos indígenas contou com o apoio de empresários, como Roberto Katsuda, revendedor de retroescavadeiras usadas no garimpo.
Na véspera, dia do índio, cerca de 130
indígenas de seis estados, representantes de dez etnias, haviam se manifestado
na Esplanada dos Ministérios, dessa vez contra o projeto de lei 191 e pela
retirada de garimpeiros de seus territórios. O documento divulgado também
protestava contra o projeto de lei 490, que fragiliza limites de terras
indígenas ao dificultar novas demarcações e abre caminho para contatos com
povos isolados. Esse projeto foi aprovado em junho pela Comissão de
Constituição e Justiça da Câmara.
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