03 abril 2012

Lembrando uma mulher guerreira

Saudade de Solange
Luciano Siqueira *

Quem já viveu umas tantas décadas e experimentou a doçura e o amargor de muitas lutas e diferentes situações, trás na alma impressões do passado que se fundem com as vivências do presente e mantêm acesa a chama que impele a pelejar sempre. Fatos, diálogos, pessoas que marcam para toda a vida.

Por isso, hoje deu uma saudade imensa de você, Solange. Daquele seu jeito muito engraçado de falar, a voz fanhosa, o sorriso fácil.


- Baixinho, temos que fazer uma discussão sobre isso. Assim não dá – pois muito ao modo da velha AP, você logo pegou esse hábito de tratar a todos por “Baixinho”.

Topava qualquer tarefa, desde o início da sua militância no movimento estudantil, quando fazia ciências sociais na Faculdade de Filosofia de Pernambuco. Depois, com o Ato Institucional número 5 e o Decreto-Lei 477, que tornaram a ditadura mais furiosa e afastaram muitos de nós da Universidade, proibidos de estudar por três anos como punição pelo crime de fazermos oposição ao regime, você passou a integrar uma comissão de apoio à direção regional. De manhã cedo, chegava ao ponto de contato trazendo um quilo de arroz ou de feijão, uma lata de leite e ou de sardinha – contribuição para o socorro vermelho, como chamávamos a ajuda aos companheiros que na clandestinidade passavam por dificuldades materiais.

- Um dia o mundo se transformará no reino da liberdade e da fartura, como sonhou Marx - repetimos muitas vezes caminhando juntos pelas ruas do Recife. Adiante, em Natal; até que os rigores da segurança e a transferência para lugares distantes cortassem o contato com você e Tadeu.

Voltamos a nos ver nas masmorras do DOI-CODI, nas antigas instalações do IV Exército, esquina da Rua do Príncipe com o Parque Treze de Maio. Você e Tadeu haviam se transferido para Juazeiro, no Ceará, até serem presos no início de 1974. Foi terrível chegar ali depois de três dias de tortura em Fortaleza e encontrar você e uma penca de companheiros. Caíram quase trinta. Chegamos por último – eu, e sete dias depois, Luci.

Como esquecer a sua voz, junto com Luci e outras companheiras que em coro entoavam aquele trecho do hino católico que diz “prova de amor maior não há do que dar a vida pelo teu irmão”, toda vez que um de nós ela levado para a tortura? Uma vez, ao voltar à cela, encapuzado, o corpo arrebentado pelo choque elétrico, pelo pau-de-arara e porradas de todo tipo, deu para ouvir uma companheira que fraquejara, em desespero, apelar:

- Magro, você tem que falar, não vai agüentar isso não, eles vão te matar.

E imediatamente sua voz firme:

- Nada disso, Baixinho. Resista! Resista pela liberdade e pelo socialismo!

Tempos depois, em liberdade, quando começamos a reorganizar o PCdoB em Pernambuco, você foi uma das primeiras a se apresentar. Confirmava o que um dos torturadores dissera a Tadeu: “essa mulher bota sua vida a perder, afaste-se dela; ela nunca vai deixar a militância”.

Um baita elogio, que você fez por merecer até o fim – inclusive no leito do hospital, aquela luta tremenda. Amanhã faz sete anos. A dor da perda se converteu em saudade. E na certeza de que você viverá sempre, como todos os que lutaram até o último minuto da vida.

(Crônica publicada em 6 de abril de 2006 no portal Vermelho www.vermelho.org.br e no livro do autor “Como lírio que brotou no telhado”, Editora Anita Garibaldi São Paulo, 2007).

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