O que significa a escolha por uma postura
"rigorosamente institucional" da cúpula diplomática com relação ao
processo de afastamento de Dilma Rousseff
Por Leticia Pinheiro e Maria Regina
Soares de Lima, na Carta Capital
Com destaque na mídia nacional,
circulou a notícia de que o Itamaraty pretendia adotar uma "postura rigorosamente institucional" com
relação ao processo em curso de impeachment da Presidente Dilma.
Traduzida pelo próprio articulista, esta postura implicaria que a cúpula
diplomática não iria "denunciar um 'golpe' no exterior".
Tal comportamento não constitui
surpresa para quem acompanha a política externa tendo em vista o tradicional
apego daquela instituição ao princípio da "não ingerência" em
assuntos domésticos até hoje aplicado, até onde se tem notícia, a eventos na
esfera internacional.
Sua aplicação ao campo doméstico do
próprio Brasil revela uma narrativa também tradicional na casa de Rio Branco de
considerar a política externa como uma política de Estado e não de governo.
Quais as implicações desta crença?
Em primeiro lugar, cabe sublinhar que,
diferentemente do suposto que ancora este entendimento, afirmamos que toda
política de Estado nasce como política de governo. E, da mesma forma que esta
transformação se deve a um processo político, assim será sua eventual negação
como política de Estado.
Dito isto, a primeira e mais óbvia
implicação desta crença equivocada de que a política externa estaria vinculada
a interesses nacionais autoevidentes e/ou permanentes, é o Itamaraty se colocar
em um lugar muito particular na estrutura institucional e política brasileira,
acima da "pequena política" dos partidos e dos grupos de interesse.
E, por extensão, desconsiderando que no
regime presidencialista e democrático é o presidente o responsável pela
formulação da política externa que, por sua vez, resulta de coalizões,
barganhas, disputas e acordos entre representantes de interesses diversos,
cabendo ao Ministério das Relações Exteriores a sua condução por delegação da
presidência. Aliás, ordenamento a que estão sujeitos todos os demais
ministérios.
A dependência constitucional de todos
os ministérios à Presidência da República se manifesta no próprio ato
presidencial de escolha e eventual demissão dos ocupantes de suas respectivas
chefias.
Ademais, é preciso atentar para um
suposto presente nesta postura, qual seja, a de que haveria uma separação
estanque entre burocracia e política, pertencendo o Itamaraty ao primeiro
campo. Assim, com base na tese de que à esfera política caberia a definição das
prioridades e rumos e à esfera administrativa caberia apenas sua implementação,
o Itamaraty não teria poder de agencia.
No entanto, é justamente em virtude de
sua ampla e reconhecida autonomia reforçada pela especialização dos seus
quadros e pela ausência de um controle vertical de suas atividades, que torna
esta instituição um fortíssimo grupo de poder estratégico, fazendo com que a
recusa em se assumir como ator político leve a opinião pública a desconhecer
que tanto sua ação, como sua inação constituem-se, em última análise, em
escolhas políticas.
Segundo esta mesma matéria do jornal Valor, a postura do Itamaraty é consensual
entre os embaixadores mais experientes que não desejam colocar em questão o
"prestígio da Casa de Rio Branco" em uma "disputa que julgam ser
política e partidária". Arguir pela justeza da posição de neutralidade
porque a disputa é política e partidária reforça a separação estanque entre
burocracia e política acima aludida, com a qual não compartilhamos.
À parte isso, não custa lembrar que o
alegado prestígio da Casa de Rio Branco defendido pelos tais embaixadores não
foi adquirido tão somente pela história institucional da Casa, mas também - e
principalmente – pela natureza das decisões e políticas dos governos que as
deliberaram, conduzidas com profissionalismo e competência pelo Itamaraty.
Exemplo disto é que o giro do chanceler
Vieira pela África às vésperas da votação do impeachment na Câmara dos Deputados, buscava justamente resguardar o protagonismo
que a região adquiriu na agenda da política externa brasileira por determinação
de um governo do qual a administração agora sob ameaça de impeachment é
sucessora, e não como decorrência de uma orientação particular da Casa
de Rio Branco.
Se o chanceler hoje a defende como se
fosse uma política de Estado é porque a mesma nasceu como política de um
determinado governo com mandato popular e soberano para tanto.
Por fim, mesmo que não tenha sido esta
a intenção, a justificativa alegada para que o Itamaraty se mantenha distante
deste processo, qual seja, a percepção de que seria uma disputa política e
partidária, acaba por legitimar a razão específica para se arguir pela
ilegalidade do processo de impeachment, isto é, a de que se trata de um
processo político e partidário.
Se estas são razões legítimas a
endossar um processo de impeachment nos regimes parlamentaristas, no
presidencialismo apear do poder alguém eleito pelo voto majoritário só pode
ocorrer quando existem ponderáveis razões jurídicas e legais.
*Leticia Pinheiro é Pesquisadora IESP/UERJ. Maria Regina
Soares de Lima é Pesquisadora Senior IESP/UERJ. Integrantes do Grupo de Reflexão sobre Relações Internacionais/GR-RI.
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