É desalentador e negativo para a
imagem do Brasil ver como uma onda de indignação nas ruas deu legitimidade a
uma iniciativa puramente política
El Pais
O Brasil tem diante de si um
grande desafio. Terá de explicar muito bem ao mundo, a seus parceiros políticos
e comerciais da América
Latina e fora dela por que o Congresso está depondo Dilma Rousseff,
reeleita democraticamente, pelas urnas, há 19 meses, com 54 milhões de votos.
O que
poderia justificar esse julgamento apressado e o afastamento? Ao pensar nas
grandes deposições e renúncias da história, vem-nos à mente em especial o caso
de Richard Nixon em
1974, deixando a Casa Branca em desgraça depois que se descobriu toda uma trama
de espionagem nos escritórios do partido democrata no hotel Watergate.
É disso que
se alimentaram, tradicionalmente, as chamas das verdadeiras quedas
presidenciais nas grandes potencias internacionais. Como também no Brasil.
Basta lembrar que quando Fernando Collor
renunciou, em 1992, ele o fez na esteira de graves acusações de tráfico de
influência e cobrança de propinas.
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VIVO AO VIVO | Votação do impeachment no Senado
É estranho,
assim, que Dilma
Rousseff não esteja sendo julgada por fazer espionagem, por ter roubado, por
ter enriquecido ou beneficiado a si ou a sua família durante os seis anos em
que esteve no poder. Ao que sabemos, a presidenta não embolsou um único
centavo além da remuneração de 320.000 reais ao ano que lhe cabe por presidir o
país.
A governante
é acusada de descumprir a legislação fiscal ao utilizar dinheiro de bancos
públicos para cobrir buracos orçamentários, dando a sensação de que as contas
governamentais estavam sob controle antes das últimas eleições.
Trata-se
de uma maquiagem fiscal, pura e simples. Nada de novo debaixo do sol. São
incontáveis os casos de ajustes de contas suspeitos nos países desenvolvidos.
Isso foi feito no Brasil, nos Estados Unidos, na Espanha e no mundo todo,
principalmente em anos de crise econômica.
Sem dúvida, é uma prática nociva pela qual qualquer Governo deve prestar
contas, mas que não justifica, de modo algum, a adoção de uma medida tão
drástica como é o impeachment.
O bom das
democracias ocidentais é que elas possuem garantias institucionais destinadas a
renovar o Governo dentro de prazos definidos pela via constitucional. Se um
presidente ou um primeiro-ministro fracassam em sua gestão, ele ou seu partido
pagarão o preço nas eleições seguintes. Enquanto isso, têm o direito e o dever
de governar. Mais do que isso: um país não pode viver em um estado permanente de
campanha eleitoral. E não deve se pautar conforme as oscilações das pesquisas
sobre popularidade.
Há hoje 61%
de brasileiros para os quais a presidenta deve ser destituída? De fato. Mas
certamente em 1978 era muito maior o percentual de norte-americanos que
gostariam de ver o então presidente Jimmy Carter pelas costas, no contexto de
uma crise econômica e energética não muito diferente da que vive hoje o Brasil.
E esperaram. Foram às urnas em 1980, quando cabia, tiraram-no e escolheram Ronald Reagan por uma
esmagadora maioria.
É
desalentador e negativo para a imagem do Brasil ver como uma onda de indignação
nas ruas deu legitimidade a uma iniciativa puramente política. É, falando
claramente, uma operação liderada por legisladores muito mais suspeitos de
corrupção que Rousseff. Um dado: mais de metade dos parlamentares do Brasil têm
problemas com a Justiça, sofrendo acusações de delitos como sequestro, agressão
e roubo.
Tudo isto
condimentado com uma verdadeira crueldade. Não há palavra que descreva melhor o
voto que o congressista conservador Jair Bolsonaro proferiu há um mês em favor
do impeachment de Rousseff. Dedicou-o
ao coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra, responsável por incontáveis atos de
tortura durante a ditadura, inclusive contra a própria presidenta. Seu
filho Eduardo Bolsonaro, também congressista, votou em homenagem “aos militares
de 64”.
É um drama
que um político eleito pelo povo se permita hastear a bandeira de 1964. E dá
fôlego a Rousseff e ao Partido dos Trabalhadores para denunciar um golpe de
Estado perante os seus aliados internacionais. Naquele fatídico ano, um
destacado jornal do Rio exigia em sua capa um “governo definitivo, apartidário
e democrata”. “Não podem ser adiadas as medidas excepcionais reclamadas pela
excepcionalidade da situação”, proclamava. Logo veio o golpe militar. O Brasil
entrou em uma das etapas mais sombrias da sua história. As massas que apoiavam
o golpe se atribuíam a representação do sentimento majoritário.
Ignoravam a
máxima de que a verdadeira democracia representa a vontade da maioria, mas deve
proteger também os direitos das minorias, incluídas neste caso as que querem
que sejam respeitados os prazos eleitorais que permitem, acima de tudo, a
estabilidade de um gigante da América Latina.
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