12 maio 2016

Regressão institucional

O fantasma de 1964

É desalentador e negativo para a imagem do Brasil ver como uma onda de indignação nas ruas deu legitimidade a uma iniciativa puramente política

El Pais

O Brasil tem diante de si um grande desafio. Terá de explicar muito bem ao mundo, a seus parceiros políticos e comerciais da América Latina e fora dela por que o Congresso está depondo Dilma Rousseff, reeleita democraticamente, pelas urnas, há 19 meses, com 54 milhões de votos.
O que poderia justificar esse julgamento apressado e o afastamento? Ao pensar nas grandes deposições e renúncias da história, vem-nos à mente em especial o caso de Richard Nixon em 1974, deixando a Casa Branca em desgraça depois que se descobriu toda uma trama de espionagem nos escritórios do partido democrata no hotel Watergate.
É disso que se alimentaram, tradicionalmente, as chamas das verdadeiras quedas presidenciais nas grandes potencias internacionais. Como também no Brasil. Basta lembrar que quando Fernando Collor renunciou, em 1992, ele o fez na esteira de graves acusações de tráfico de influência e cobrança de propinas.
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É estranho, assim, que Dilma Rousseff não esteja sendo julgada por fazer espionagem, por ter roubado, por ter enriquecido ou beneficiado a si ou a sua família durante os seis anos em que esteve no poder. Ao que sabemos, a presidenta não embolsou um único centavo além da remuneração de 320.000 reais ao ano que lhe cabe por presidir o país.
A governante é acusada de descumprir a legislação fiscal ao utilizar dinheiro de bancos públicos para cobrir buracos orçamentários, dando a sensação de que as contas governamentais estavam sob controle antes das últimas eleições.
Trata-se de uma maquiagem fiscal, pura e simples. Nada de novo debaixo do sol. São incontáveis os casos de ajustes de contas suspeitos nos países desenvolvidos. Isso foi feito no Brasil, nos Estados Unidos, na Espanha e no mundo todo, principalmente em anos de crise econômica. Sem dúvida, é uma prática nociva pela qual qualquer Governo deve prestar contas, mas que não justifica, de modo algum, a adoção de uma medida tão drástica como é o impeachment.
O bom das democracias ocidentais é que elas possuem garantias institucionais destinadas a renovar o Governo dentro de prazos definidos pela via constitucional. Se um presidente ou um primeiro-ministro fracassam em sua gestão, ele ou seu partido pagarão o preço nas eleições seguintes. Enquanto isso, têm o direito e o dever de governar. Mais do que isso: um país não pode viver em um estado permanente de campanha eleitoral. E não deve se pautar conforme as oscilações das pesquisas sobre popularidade.
Há hoje 61% de brasileiros para os quais a presidenta deve ser destituída? De fato. Mas certamente em 1978 era muito maior o percentual de norte-americanos que gostariam de ver o então presidente Jimmy Carter pelas costas, no contexto de uma crise econômica e energética não muito diferente da que vive hoje o Brasil. E esperaram. Foram às urnas em 1980, quando cabia, tiraram-no e escolheram Ronald Reagan por uma esmagadora maioria.
É desalentador e negativo para a imagem do Brasil ver como uma onda de indignação nas ruas deu legitimidade a uma iniciativa puramente política. É, falando claramente, uma operação liderada por legisladores muito mais suspeitos de corrupção que Rousseff. Um dado: mais de metade dos parlamentares do Brasil têm problemas com a Justiça, sofrendo acusações de delitos como sequestro, agressão e roubo.
Tudo isto condimentado com uma verdadeira crueldade. Não há palavra que descreva melhor o voto que o congressista conservador Jair Bolsonaro proferiu há um mês em favor do impeachment de Rousseff. Dedicou-o ao coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra, responsável por incontáveis atos de tortura durante a ditadura, inclusive contra a própria presidenta. Seu filho Eduardo Bolsonaro, também congressista, votou em homenagem “aos militares de 64”.
É um drama que um político eleito pelo povo se permita hastear a bandeira de 1964. E dá fôlego a Rousseff e ao Partido dos Trabalhadores para denunciar um golpe de Estado perante os seus aliados internacionais. Naquele fatídico ano, um destacado jornal do Rio exigia em sua capa um “governo definitivo, apartidário e democrata”. “Não podem ser adiadas as medidas excepcionais reclamadas pela excepcionalidade da situação”, proclamava. Logo veio o golpe militar. O Brasil entrou em uma das etapas mais sombrias da sua história. As massas que apoiavam o golpe se atribuíam a representação do sentimento majoritário.
Ignoravam a máxima de que a verdadeira democracia representa a vontade da maioria, mas deve proteger também os direitos das minorias, incluídas neste caso as que querem que sejam respeitados os prazos eleitorais que permitem, acima de tudo, a estabilidade de um gigante da América Latina.

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