14 maio 2019

Individualismo explícito


Cidadania distorcida
Luciano Siqueira

O jovem casal chama a atenção pela agilidade com que transita entre as gôndolas do supermercado de vias estreitas e muitos carrinhos em circulação. 
Eu mesmo, que há décadas me especializei em empurrar o carrinho (e depois dirigir nosso veículo com as compras), já que comprar propriamente não é minha especialidade, sempre encontro dificuldade em contornar os que estacionam justo na minha frente ou se aproximam em sentido contrário. 
Aquele jovem casal se mostra hábil ao contornar obstáculos e se posicionar onde deseja.
Quando me dirigi à fila do caixa preferencial — onde se lê a relação dos "preferenciais": idosos, gestantes, mulheres com crianças de braço e portadores de deficiência - já os encontrei em minha frente. Ele de bermudas, óculos escuros, porte atlético, toda pinta de jovem saudável. Ela bem vestida, esguia, jeitão de quem frequenta a academia e nenhum sinal de que seja gestante.
Por que optam pelo caixa preferencial?
Obviamente, pela mesma razão que os levam a ocupar a vaga de idosos ou gestantes no estacionamento, semelhante fila em bancos e assim por diante. Puro comodismo.
Ariano Suassuna contava que, num banco, certa vez perguntou a um cidadão à sua frente se estava grávido, já que não exibia nenhum sinal físico que o credenciasse a usar a fila preferencial.
Tenho vontade de imitar Ariano e abordá-los. Mas me inibo. Pra que começar o sábado brigando com desconhecidos?
E fico a imaginá-los jogando garrafa plástica ou saco de pipocas pela janela do carro e que tais.
Mas no almoço da família aos domingos, não se privam de reclamar que a cidade está suja...  “Cadê a prefeitura que não cuida!?”
Quantos milhões de habitantes deste país tropical têm o mesmo comportamento? 
É o exercício distorcido da cidadania, sob a inspiração da concepção de que o Estado existe para a satisfação de interesses pessoais privados e de que a Lei vale para todos, menos para si mesmo. 
Apesar da guerra atual de Bolsonaro e seguidores para destruir a educação “suspeita”, um dia chegaremos lá e seremos, sim, um povo civilizado.

Pode apostar.
[Ilustração: Josef Albers]
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