A fome
e o assalto
Deco
Costa*
Perto da minha casa, já quase na
esquina, um homem com um olhar nervoso vem em minha direção. Penso num assalto.
Ao chegar perto de mim, me indaga se tenho algum trocado. Estava com fome. Olho
novamente pra ele e tento compreender aquele olhar. Como nunca passei fome
fiquei imaginando como seria o meu olhar se com fome estivesse e me dei conta
que seria exatamente daquele jeito.
Confundir o olhar de fome com o olhar
de violência é um triste legado da desigualdade social. Para um legítimo
habitué da classe média branca, encastelada nos benefícios do consumo e nos
serviços que podem acessar quando o Estado for precário, enxergar a miséria
pelo olhar preconceituoso de quem sempre vai querer o que ela carrega no corpo
ou na carteira, sem se dar conta de talvez o que essa pessoa quisesse, fosse
apenas uma das três refeições dignas que nós temos é o enredo trivial
O olhar diz muito sobre uma pessoa e
mesmo assim somos incapazes de perceber a face real e dolorosa da fome. O medo
do assalto nos torna refém de relativizar ou ignorar a principal dor que ecoa
de milhares de brasileiros dia após a dia. E como entender esse contexto num
país com capacidade de produzir alimentos pra alimentar toda a população?! O
sistema não é só perverso, anda de mãos dadas com essa paisagem do atraso e da
tragédia. A fome é o legado, é a fotografia em movimento, é a “Morte e Vida
Severina, são as “Vidas Secas”, que habitam esse “mundo, mundo vasto mundo”,
convivem com o atraso e privilegiam o lucro.
Interpretar o marxismo como um
reducionismo simplista ou um campo ideológico é não compreender a própria
grandeza numa teoria econômica política que redimensionou o sentido do sistema
capitalista que voluntariamente ou involuntariamente não se preocupa em
incluir, mas sim em excluir. Para Marx, um sistema econômico que diz estar
produzindo lucro e fome ao mesmo tempo, é uma conta que só fecha
matematicamente e sociologicamente para um lado. E isso está errado. Esse viés
é a força da sua teoria.
Séculos de imposição de um sistema que
convoca o mundo para um sentimento binário, que captura a possibilidade mais
profunda de interpretação das dores do “operário em construção” pela produção
da estética da alienação, ganha a cinética da revolta. Como se a gravidade
pudesse ser relativizada, a fome vai sendo tolerada pelas películas escuras nos
carros parados em semáforos que acendem todas as luzes para uma dor ignorada,
que não é invisível, tem cheiro e cor.
Enquanto vitrines forem mais
importante do que pessoas, o medo do assalto superará a indignação pela fome.
Continuaremos reféns de muros que se erguem principalmente dentro de todos nós,
num cimento da ignorância, produzindo um futuro sempre com jeito de um passado
atrasado. A carteira, o relógio, a pulseira, a roupa, o carro, terão e serão
sempre prioridade nesse mundo que o produto parece ser o ser humano, porque
passa a ser mais importante. A vacina para essa pandemia já sabemos qual é, já
está pronta, mas o laboratório do consumo impede que as suas doses sejam
tomadas e nos permitam uma sociedade longe das faces que se confundam a fome
com o assalto.
*Deco
Costa - Professor
e advogado, mestre e doutorando em Direito pela Universidade Federal de
Pernambuco (UFPE)
Veja: Um fator de agravamento da crise https://bit.ly/2X75FJ6
Nenhum comentário:
Postar um comentário