21 novembro 2025

Cláudio Carraly opina

O fim da democracia liberal dos Estados Unidos
Cláudio Carraly* 


A democracia americana, por mais de dois séculos, apesar de profundas falhas, serviu como farol de aspirações democráticas globais, porém atravessa hoje uma crise existencial que ameaça sua própria natureza. O que testemunhamos não é um colapso súbito, mas uma erosão sistemática e deliberada das instituições que sustentaram o experimento democrático mais antigo do mundo moderno. Esta transformação segue padrões reconhecíveis de deriva autoritária, ecoando experiências contemporâneas desde a Hungria de Orbán até El Salvador de Bukele, passando pela Polônia de Kaczynski e os primeiros anos do Brasil de Jair Bolsonaro.

Arquitetura da Autocracia: Quando a Democracia se Devora

O processo em curso nos Estados Unidos replica um roteiro familiar aos estudiosos do autoritarismo competitivo, teorizado por Steven Levitsky e Lucan Way. Diferentemente dos golpes dramáticos do século XX, essa transformação utiliza as próprias instituições democráticas para desmontá-las por dentro. Viktor Orbán, na Hungria, forneceu o modelo mais refinado: manter as aparências eleitorais enquanto esvazia sistematicamente o conteúdo democrático das instituições por meio do que Bálint Magyar denomina "captura de Estado mafioso".

Esse mesmo manual foi adaptado com sucesso em contextos diversos. Em El Salvador, Nayib Bukele consolidou poder através de popularidade genuína combinada com intimidação sistemática das instituições. Quando invadiu o Congresso salvadorenho em 2020 com militares armados para pressionar por aprovação de empréstimos, testou os limites da resistência institucional exatamente como Trump faria em 6 de janeiro de 2021. A diferença crucial é que Bukele teve sucesso onde Trump inicialmente falhou, mas isso mudou com seu retorno triunfal em 2025.

A cronologia da implementação americana revela aceleração preocupante. A primeira administração Trump (2017-2021) estabeleceu precedentes com o "Muslim Ban" e ataques sistemáticos à imprensa, testando a resistência institucional. O período Biden (2021-2025) proporcionou uma leve estabilização, mas também permitiu que as forças trumpistas se reorganizassem e aprendessem com seus erros iniciais. O retorno de Trump em janeiro de 2025 marca uma nova fase, caracterizada por poderes executivos expandidos e resistência institucional enfraquecida e enfraquecendo.

Entre 20 de janeiro e 28 de janeiro de 2025, uma ordem executiva removeu proteções legais contra demissões políticas para funcionários federais. Em fevereiro, mais de 75.000 funcionários públicos aceitaram acordos de "renúncia adiada", enquanto 107.000 postos foram eliminados do próximo orçamento fiscal. Tribunais federais declararam essas medidas ilegais, mas a implementação de fato continua durante os processos judiciais, uma tática aprendida diretamente do manual de Orbán, que ignora decisões judiciais inconvenientes enquanto apela e reorganiza o judiciário.

Defensores da administração apresentam narrativa alternativa, argumentando que essas medidas visam aumentar a eficiência governamental e eliminar o que chamam de "Estado administrativo" não eleito. Esses extremistas no poder defendem que a reforma do funcionalismo é necessária para restaurar a responsabilidade democrática. Esta interpretação, embora minoritária entre cientistas políticos, ecoa justificativas similares oferecidas por todos os regimes autoritários contemporâneos: eficiência contra corrupção, vontade popular contra elites entrincheiradas, uma suposta ordem contra caos burocrático.
 

O Novo Macartismo

O paralelo com o macartismo dos anos 1950 é estruturalmente preciso. Joseph McCarthy perseguia supostos comunistas alegando defender a democracia americana; o novo macartismo segue nessa mesma trilha, persegue democratas, acadêmicos e jornalistas em nome de uma visão autoritária de poder ultranacionalista. A diferença metodológica é crucial: enquanto McCarthy operava através de comissões congressionais com alguma supervisão judicial, o novo sistema utiliza poderes executivos expandidos e agências federais, criando menos pontos de controle institucional, ou seja, é muito mais perigoso que o original.

Os mecanismos específicos de coerção em 2025 são impressionantemente abrangentes. Cinquenta e três universidades estão sob investigação federal por violações de programas DEI - Diversidade, Equidade e Inclusão, com ameaças de corte de 400 milhões de dólares em financiamento federal. Sistemas de vigilância de redes sociais monitoram estudantes internacionais, buscando identificar posições “pseudo-antissemitas". O uso de leis de emergência contra opositores políticos se intensifica, incluindo tarifas políticas punitivas como as de 50% contra o Brasil em fevereiro de 2025, uma escalada que ecoa as sanções arbitrárias de regimes autoritários contra países que os desafiam.

Esse padrão de perseguição ampla encontra paralelos inquietantes em outros contextos. Bukele em El Salvador utilizou a guerra contra gangues para justificar estado de emergência que já dura mais de dois anos, permitindo prisões em massa e suspensão de direitos constitucionais. Embora inicialmente popular devido à redução dramática da violência, o modelo salvadorenho demonstra como crises reais podem ser instrumentalizadas para consolidação autoritária. Trump aprende dessa experiência, usando múltiplas "emergências" simultâneas - imigração, "wokismo", "marxismo cultural", para justificar poderes extraordinários.

Apoiadores dessas medidas apresentam contra-argumentos que merecem consideração séria. Grupos como a Foundation for Individual Rights in Education apresentam dados mostrando que 79% dos estudantes conservadores relatam autocensura em campus universitários, argumentando que as medidas restauram "equilíbrio ideológico". Essa narrativa de opressão conservadora em universidades, embora contestada por evidências mais amplas, ressoa com experiências genuínas de estudantes e professores conservadores em certos ambientes acadêmicos. O problema não é a inexistência desses fenômenos, mas sua instrumentalização para justificar medidas autoritárias desproporcionais.

Militarização Silenciosa das Instituições

O Estado de direito enfraquece através de táticas que testam sistematicamente os limites constitucionais. Esta estratégia, denominada de "legalismo autocrático", mantém aparências de legalidade enquanto subverte a substância democrática. O modelo é aplicado com precisão cirúrgica, cada medida individual pode parecer defensável, mas o conjunto produz transformação qualitativa e exponencial do regime.

O uso do chamado tarifaço contra o Brasil exemplifica essa dinâmica. Tradicionalmente reservado para ameaças genuínas à segurança nacional, o International Emergency Economic Powers Act - IEEPA é agora aplicado contra aliados históricos por divergências políticas menores. Tentativas de influenciar nomeações judiciais através de pressão política direta se intensificam, enquanto a transformação do aparelho de Estado em instrumentos de perseguição política interna e externa avança sistematicamente.

Particularmente reveladora é a coerção midiática via Comissão Federal de Comunicações, que pressiona redes de TV através de aprovações de fusões bilionárias. A suspensão do talk show de Jimmy Kimmel pela ABC em setembro de 2025, após críticas persistentes ao trumpismo, e o cancelamento de Stephen Colbert na CBS demonstram como agências regulatórias são instrumentalizadas para silenciar vozes dissidentes através de pressão econômica direta e indireta. O padrão nem é mais sutil e, diante disso, redes de TV "voluntariamente" silenciam críticos para proteger interesses comerciais multibilionários sob análise governamental.

Essa tática ecoa métodos utilizados por Orbán na Hungria, onde oligarcas aliados compraram ou estrangularam economicamente veículos de mídia independentes. Bukele em El Salvador emprega variação similar, usando auditorias fiscais seletivas e pressão publicitária estatal para disciplinar jornais críticos. O modelo americano é mais sofisticado porque utiliza o próprio mercado como mecanismo de censura, mantendo aparências de liberdade empresarial.

Tribunais federais demonstram capacidade de resistência, com decisões contrárias à administração em 67% dos casos contestados até março de 2025. O sistema judiciário federal, com seus juízes vitalícios, representa o principal obstáculo institucional ao autoritarismo. Mas essa resistência enfrenta pressão crescente através de nomeações estratégicas e campanhas de deslegitimação. O cenário futuro depende da velocidade dessa captura judicial, resistência bem-sucedida pode frear a deriva autoritária, mas nomeações judiciais futuras podem alterar irreversivelmente o equilíbrio de poder.

EUA como Catalisador da Extrema-Direita Global

A dimensão internacional representa talvez a transformação mais revolucionária e subestimada. Os Estados Unidos abandonaram o papel de promotor da chamada democracia liberal para se tornarem ativamente um catalisador global do autoritarismo. Essa inversão histórica produz ondas sísmicas através de todo o sistema internacional.

A interferência eleitoral americana agora rivaliza com práticas de regimes autocráticos. O bilionário Elon Musk promove abertamente o AfD alemão (partido de orientação neonazista) antes das eleições de março de 2025, enquanto a Conferência "Make Europe Great Again" em Madrid coordena estratégias entre Trump, Orbán, Meloni e o partido Vox espanhol. O vice-presidente JD Vance critica "erosões democráticas" europeias na Conferência de Munique, invertendo completamente a retórica tradicional americana sobre direitos humanos e democracia, ou seja, estamos vendo uma verdadeira "Internacional Fascista" em pleno funcionamento.

Institutos de pesquisa europeus registram aumento de 23% na aprovação de partidos de extrema-direita após endossos americanos explícitos. O fenômeno representa inversão completa da abordagem tradicional estadunidense, que historicamente favorecia forças democráticas-liberais. Agora os Estados Unidos exportam autoritarismo com a mesma eficácia que antes exportavam seu modelo de democracia.

Essa coordenação internacional autoritária encontra paralelos históricos inquietantes. Assim como regimes fascistas dos anos 1930 se inspiravam e coordenavam mutuamente, a nova extrema-direita desenvolve solidariedade transnacional baseada em valores compartilhados: nacionalismo étnico, autoritarismo populista, racismo, misoginia, desprezo por instituições multilaterais e democráticas e perseguição à diversidade sexual. Bukele participa dessa rede através de relacionamento próximo com Javier Milei na Argentina e apoio explícito a Trump, criando eixo autoritário que busca contaminar as Américas.

Realistas da política externa apresentam interpretação alternativa, argumentando que essa reorientação reflete declínio hegemônico natural dos EUA e busca por novos aliados em mundo multipolar. Alguns analistas veem essa mudança como adaptação estratégica, e não travessia ideológica. Essa perspectiva tem mérito analítico, mas subestima o componente sistêmico e genuíno da transformação trumpista e sua capacidade de inspirar movimentos similares globalmente.

Autocensura como Arma: O Silenciamento da Sociedade

A chamada "erosão executiva" é considerada mais perigosa que golpes dramáticos, porque produz desengajamento cívico através de intimidação psicológica. A autocensura se torna arma mais eficaz que a censura direta, pois cria aparência de liberdade enquanto produz conformidade real e cria seguidores que replicam a ideologia dominante. Pesquisas quantitativas documentam esse fenômeno com precisão alarmante. Nessas pesquisas, professores universitários relatam modificar currículos por medo de represálias, enquanto jornalistas admitem evitar temas considerados "sensíveis", e grandes corporações de mídia autocensuram conteúdo crítico ao governo, criando um sistema interno de coerção que mantém aparências de liberdade editorial.

O humor político emergiu paradoxalmente como forma mais eficaz de resistência democrática. Comediantes tornaram-se mais efetivos que a oposição política tradicional na denúncia de contradições do poder, precisamente porque o humor fura bolhas ideológicas e expõe absurdos de forma acessível. Não coincidentemente, esses enfrentaram pressões sistemáticas: o comediante Jimmy Kimmel foi suspenso em setembro de 2025 após críticas persistentes ao trumpismo, enquanto Stephen Colbert teve seu programa cancelado quando a CBS decidiu resolver "questões pessoais" com Trump. O padrão revela como o humor político, por sua capacidade de mobilizar através do riso, representa ameaça particular ao autoritarismo.

Movimentos de resistência organizada mostram resiliência impressionante. A Federal Employee Unions Coalition e Scholars at Risk organizaram redes de proteção mútua, enquanto mais de 200 universidades criaram fundos legais para defesa de professores. Esta mobilização sugere capacidade resiliente das instituições da sociedade civil norte-americana, mas enfrenta os enormes recursos e organização estatal crescentes.

Veredito Científico: Consenso sobre o Declínio

O consenso acadêmico sobre a natureza da transformação americana é extraordinário em sua convergência. Estudo conduzido pelo Instituto V-Dem com 527 cientistas políticos americanos em janeiro de 2025 revela que 89% classificam o regime atual como "autoritarismo competitivo" ou "democracia defectiva". Steven Levitsky, da Universidade de Harvard e autoridade mundial em transições autoritárias, é categórico: "Não estamos mais vivendo em um regime democrático".

As métricas internacionais confirmam essa avaliação. A Freedom House rebaixou os EUA de 83 para 71 pontos entre 2017 e 2025, enquanto o Polity IV reduziu a classificação de +8 para +5 na escala democrática. O V-Dem Democracy Index coloca os Estados Unidos em 29º lugar global, abaixo de países como Uruguai e Costa Rica - uma humilhação histórica para o suposto e autonomeado "líder do mundo livre".

A comparação internacional torna o declínio estadunidense ainda mais evidente. Enquanto os Estados Unidos retrocedem, países como a própria Polônia demonstraram capacidade de reverter deriva autoritária através de mobilização eleitoral massiva em 2023. A diferença crucial é que a Polônia contava com pressão externa da União Europeia, enquanto os Estados Unidos, como potência hegemônica, não enfrentam constrangimentos externos equivalentes. Logicamente que vozes dissidentes existem, mas são cada vez mais minoritárias. As instituições dos EUA ainda mantêm alguma robustez capaz de reverter o declínio democrático, embora a velocidade e sofisticação dos processos de captura institucional abalem profundamente esse muro institucional ainda de pé.

Cenários Futuros: Entre Colapso e Consolidação

A análise prospectiva identifica três cenários principais, cada um com probabilidades estimadas baseadas em modelos comparativos de transições autoritárias. O primeiro e mais provável cenário aponta para consolidação autoritária plena, esse cenário envolve captura completa do judiciário federal através de nomeações estratégicas, federalização da segurança eleitoral para eliminar controles estaduais e controle crescente da mídia através de pressão econômica sistemática. O precedente histórico é a Hungria entre 2010 e 2018, onde Viktor Orbán consolidou hegemonia através de métodos similares, transformando uma democracia europeia em autocracia estável.

O segundo cenário prevê estabilização em modelo de autoritarismo competitivo. Eleições continuam ocorrendo, mas com vantagens sistemáticas para incumbentes, enquanto a oposição é tolerada, mas constrangida através de múltiplos mecanismos legais e extralegais. Este modelo pode persistir por décadas, como demonstram casos na Hungria, Rússia e Venezuela, criando aparência de pluralismo político enquanto elimina possibilidade real de alternância.

O terceiro cenário envolve a restauração democrática através de mobilização eleitoral massiva nas eleições subsequentes, resistência judicial bem-sucedida, pressão internacional coordenada ou divisões na coalizão autoritária. Precedentes sugerem possibilidade de reversão, mas requerem condições específicas e um nível de mobilização interna e apoio externo que podem não se materializar nos Estados Unidos de hoje.

Resistência e Resiliência

Diferentemente de muitos casos de transição autoritária, os Estados Unidos mantêm recursos institucionais significativos para resistência. A estrutura federal permite que estados democratas como Califórnia e Nova York utilizem recursos econômicos e legais substanciais para resistir à centralização federal. O federalismo americano, ironicamente criado para proteger o regime escravocrata, pode agora proteger a democracia através de múltiplos centros de poder que complicam a captura autoritária total pelo poder central.

O poder judicial federal, com seus juízes vitalícios nomeados em administrações anteriores, mantém independência relativa que frustra sistematicamente iniciativas autoritárias. Decisões contrárias à administração em casos de comércio, imigração, meio ambiente e direitos civis demonstram capacidade de resistência institucional que diferencia os Estados Unidos de muitos outros casos de deriva autoritária.

A sociedade civil americana permanece robusta, com organizações expandindo recursos e capacidade de litígio para níveis históricos. Financiamento privado para defesa de direitos civis atingiu volumes sem precedentes, criando infraestrutura de resistência que pode sustentar uma oposição prolongada. A mídia independente, apesar da pressão crescente através de agências regulatórias federais, mantém capacidade investigativa significativa. Meios como o New York Times possuem recursos financeiros e reputação global que complicam tentativas de silenciamento direto. Plataformas digitais descentralizadas ainda dificultam controle total da informação, embora as chamadas big techs estejam abertamente apoiando o governo de Donald Trump e apoiando a crescente desestruturação democrática.

Lições do Autoritarismo Contemporâneo

A experiência húngara, nascida em 2010 e presente até hoje, oferece lições cruciais sobre consolidação autoritária através de controle midiático sistemático, reforma judiciária estratégica e instrumentalização de fundos europeus para cooptação política. A lição central é que recursos externos, incluindo ajuda internacional, podem ser capturados e pervertidos por regimes autoritários para fortalecer seu próprio poder.

A Polônia, entre 2015 e 2023, demonstra dinâmica diferente, em que tentativas de captura judicial foram bloqueadas por resistência sustentada da sociedade civil e pressão da União Europeia, culminando em restauração parcial da democracia em 2023. A lição crucial é que mobilização sustentada pode reverter deriva autoritária, mas requer coordenação entre sociedade civil, oposição política e pressão externa.

El Salvador sob Bukele desde 2019 exemplifica como popularidade genuína pode ser instrumentalizada para consolidação autoritária. Bukele mantém aprovação superior a 80% enquanto desmonta sistematicamente controles institucionais, demonstrando que autoritarismo competitivo pode ser profundamente popular, especialmente quando produz resultados tangíveis como redução da criminalidade.
O Fim da Era Liberal?

A transformação dos Estados Unidos transcende fronteiras nacionais com implicações sísmicas para a ordem internacional. Como potência global desde 1945, estruturaram o sistema internacional liberal através de instituições multilaterais, alianças econômicas e promoção dos seus valores internos. Sua conversão aberta ao autoritarismo produz efeitos sistêmicos que redefinem a própria natureza das relações internacionais.

O efeito dominó é mensurável e acelerado. Regimes autoritários globalmente sentem-se legitimados e empoderados pela transformação americana, enquanto índices de democracia global registram declínio acelerado desde 2017. A total inversão do já limitado soft power americano agora favorece movimentos autoritários ao invés dos regimes liberais-democráticos, representando uma mudança histórica comparável ao fim da hegemonia do Império Britânico no século XX.

Alianças tradicionais como NATO e OCDE enfrentam crise existencial sem liderança democrática americana consistente. Instituições multilaterais perdem capacidade de coordenação e enfrentamento, criando um vácuo complexo de analisarmos no curto prazo, mas que surgirão como alternativas ao liberalismo americano decadente. Paradoxalmente, a crise norte-americana pode catalisar democratização em outras regiões. Europa, América Latina e Ásia podem assumir liderança democrática global, desenvolvendo modelos alternativos de governança liberal que não dependam de hegemonia americana. Essa transição, embora potencialmente positiva a longo prazo, envolve um período de instabilidade e incertezas significativas.

Entre Colapso e Renovação: O Veredito

O que testemunhamos nos Estados Unidos representa momento de inflexão histórica cujo resultado permanece genuinamente indeterminado. As forças de erosão democrática são poderosas, sistemáticas e seguem padrões reconhecíveis de transição autoritária observados em múltiplos contextos contemporâneos. Simultaneamente, recursos de resistência institucionais, sociais e federais mantêm capacidade significativa de resposta que diferencia o caso americano de muitas outras transições autoritárias.

A questão central não é se a democracia dos EUA enfrenta ameaça existencial - o consenso acadêmico confirma inequivocamente que enfrenta - mas se possui recursos suficientes para superá-la. A resposta determinará não apenas o futuro deste país, mas o destino da própria ideia democrática no século XXI, pois a falência da democracia liberal em seu berço histórico representaria golpe devastador para essas aspirações de forma global.

Para o mundo, isso representa simultaneamente o fim de uma era e o início de outra. Se a democracia liberal pode morrer onde nasceu e floresceu por mais de dois séculos, que esperança resta para sua sobrevivência em contextos menos favoráveis? Alternativamente, se pode ser renovada e fortalecida através desta crise existencial, que lições oferece para democratização e resistência autoritária mundial? Que tal uma nova democracia baseada verdadeiramente na inclusão, igualdade, fraternidade, solidariedade, humanismo e internacionalismo?

A história permanece aberta. O autoritarismo americano não é inevitável, assim como seu modelo de democracia não é eterno. O que emerge desta crise dependerá da capacidade de mobilização coletiva dos próximos anos críticos. Neste sentido, o diagnóstico sombrio deste texto não constitui profecia fatalista, mas alerta para ação urgente e sustentada em defesa das instituições democráticas, ainda que imperfeitas, enquanto ainda é possível salvá-las. O tempo está se esgotando, mas não se esgotou. A democracia norte-americana pode morrer ou pode renascer ainda mais forte em novos parâmetros, quem sabe, mais inclusiva e socialmente mais justa.


*advogado, ex-secretário executivo de Direitos Humanos de Pernambuco

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