14 novembro 2025

"O agente secreto", crítica

O agente secreto
Comentário sobre o filme de Kleber Mendonça Filho, em exibição nos cinemas
GUILHERME COLOMBARA ROSSATTO*/A Terra é Redonda  

Problemas internos e externos

Kleber Mendonça Filho é obcecado pelo cinema norte-americano. Desde blockbusters (filmes de grande orçamento) como Tubarão (1975) de Steven Spielberg até faroestes como Meu ódio será sua herança (1969) de Sam Peckinpah. Essas duas décadas da produção cinematográfica estadunidense parecem ser incontornáveis para o cineasta, influenciando o modo como escreve os roteiros, filma cenas de ação e constrói os personagens dos filmes que vêm lançando há duas décadas.

Desde o curta Vinil Verde (2004), cuja trama lembra um filme de terror estadunidense de baixo orçamento digno das “viagens” de John Carpenter e Wes Craven.[1] Além disso, no filme de 2004 há acenos ao cinema francês, pois o diretor brasileiro se inspirou em La Jetée (1962) de Chris Marker.

Por outro lado, Kleber Mendonça Filho é obcecado pelo Brasil, pelo cinema desse país no qual nasceu e pela cidade de Recife. Ele comentou sobre as violências políticas e econômicas da cidade em O som ao redor (2012) e Aquarius (2016). Em ambos, o cineasta “[…] demostra apreço pela historicidade das imagens, sons e estética cinematográfica. Explicita também sua ênfase artística na salvação das mídias e formas de memória. Pode-se dizer, pela arquitetura da memória”.[2]

Posteriormente, ele homenageou os cinemas de Recife no século XX em Retratos fantasmas (2023) e volta a fazê-lo em O agente secreto (2025), mas dessa vez, a partir do filme histórico ficcional. Enquanto o primeiro é um documentário (mesclado ao estilo do cineasta), o segundo (foco deste texto) é um filme que “[…] fala uma linguagem que é metafórica e simbólica, uma linguagem que cria uma série de realidades aproximadas ou possíveis, mais do que uma realidade literalmente verdadeira – embora ela também apresente pontos de intersecção com o literal. Trata-se de uma linguagem por meio da qual o filme levanta os mesmos tipos de questões acerca do passado que os historiadores, mas que precisamos aprender a ‘ler’…”.[3]

A partir do filme histórico ficcional, o cineasta retorna até 1977, momento em que o país enfrentava uma Ditadura Militar (1964-1985) e tece comentários acerca do Brasil de 2025. Como grande parte dos filmes históricos, está dividido entre duas temporalidades, expressando pontos de vista relativos ao momento da produção. O filme é um produto de 2025, estabelecendo comunicações entre tal ano e 1977.

Nesta ponte, o cineasta dialoga com uma série de fatores (externos e internos), desde o corte de verbas em universidades públicas até a violência política da atualidade (estabelecendo paralelos com o período ditatorial). “Predominaria aí a ideia de que os cineastas não copiam a realidade, pois, ao transpô-la para o filme, revelam seus mecanismos, mantendo-se assim a noção do cinema enquanto instrumento de revelação de uma determinada mentalidade”.[4]

Daí a mistura gera um filme singular: thriller político aos moldes estadunidenses em Recife. Aqui, o interesse do cineasta reside nos filmes paranoicos dos anos 1970, tramas com espiões, jornalistas e políticos corruptos. As influências são variadas: Klute – o passado condena (1971), Três dias do condor (1975) e Todos os homens do presidente (1976). O agente secreto (Wagner Moura), curioso personagem que vaga pela cidade pernambucana e captura a atenção dos espectadores e da população, é apenas um professor universitário caçado por um rival.

O diretor tenta replicar os filmes de ação e suspense do período, inserindo características notáveis.[5] Uma perna que anda sozinha, um delegado conservador que se pinta para o carnaval, empresários corruptos vinculados ao governo e por aí vai.

Tal qual outras peças da filmografia de Mendonça Filho, O agente secreto combina aspectos do cinema norte-americano aos detalhes e preciosidades da vida brasileira. Tais detalhes podem ser felizes ou trágicos, dialogando com um país de contrastes muito claros. Personagens sinistros, como os matadores Bobbi e Augusto de O agente secreto (Gabriel Leone e Roney Villela) ou figuras que agradam o público, como a Dona Sebastiana (Tânia Maria) ou o DJ Urso de Bacurau (Jr. Black).

O corpo no posto, a menina na rua e a perna no tubarão

Na cena inicial de O agente secreto, o protagonista, nomeado como Marcelo (na realidade, Armando), chega até um posto de gasolina no caminho para Recife. Assim que para o carro, ele se assusta. Há um corpo estirado no meio do posto, largado no meio do nada, coberto parcialmente, mas a vista para qualquer um que passe e escolha ignorar o mesmo. O assassinato é duplo: o corpo foi morto e a presença ignorada. Após morrer, ele segue violentado.

Os planos e cortes da filmagem optam por enfocar no rosto de Marcelo, horrorizado diante daquilo e temendo pela própria segurança. A partir desses primeiros segundos, o filme transmite uma mensagem política: ninguém está seguro em um país sob regime militar (descrito pelo roteiro como um período cheio de pirraça).

Todos estão desconfiados, temerosos e podem sofrer o mesmo destino do corpo no posto. A câmera também ressalta a imensidão do cenário que Marcelo adentrou; uma estrada em meio ao sertão, preenchida por uma atmosfera gigantesca. Nós compreendemos que ele está em um vazio existencial, marcado por uma paisagem que não termina. Há um choque entre o cenário e os planos intimistas do rosto do agente secreto. Dessa forma, os movimentos de câmera criam “[…] um processo de conduzir uma narrativa e de veicular ideias… uma escrita própria, que se incarna em cada realizador sob a forma de um estilo…”.[6]

Novamente, vale a pena frisar: o estilo adotado pelo realizador Kleber Mendonça Filho funde o terror e as questões políticas, de modo peculiar e original. Mesmo assim, descobrimos que o sujeito não foi assassinado por militares ou policiais. Não, ele foi assassinado em decorrência de um assalto frustrado. Segue-se o retrato de um país violento por natureza, no qual os cidadãos não precisam dos aparelhos institucionais para matar. Caso se sintam ameaçadas, as pessoas podem reagir e acabar com a vida do inimigo.

Em nossa leitura, o corpo largado no posto pode ser um comentário sobre o Brasil dos séculos XX e XXI. Primeiro, como dito, uma menção aos horrores da ditadura, época na qual as pessoas podiam ser assassinadas, raptadas ou agredidas arbitrariamente. Segundo, funciona como um lembrete acerca das permanências brasileiras: as pessoas seguem morrendo neste país, ignoradas pelos círculos de poder ou pelas instituições que deveriam protegê-las.

O caso ficcional parece citar diretamente um caso recente. Em Recife (2020), um funcionário terceirizado de uma unidade da rede de mercados Carrefour faleceu durante o expediente. A empresa, então, escondeu o corpo entre diversos produtos. Os clientes continuaram consumindo e o corpo foi ignorado.[7]

Os paralelos entre o filme e os acontecimentos brasileiros recentes não param por aí. Em outra cena, Cleide, uma cidadã rica de Recife vai até uma delegacia improvisada para prestar depoimento criminal. Sob a sua proteção, a filha da empregada doméstica da casa foi atropelada por um ônibus. A menina faleceu e o corpo deixado no meio da rua. A cidadã rica tenta se proteger pelos aparatos institucionais: ela vai depor antes do horário comercial, em uma sala totalmente fechada. A câmera filma a mesma pelo lado de fora, incapaz de se comunicar plenamente.

Ainda assim, os esforços não são suficientes: a empregada doméstica chega ao local e demanda justiça. Ela tenta entrar, mas é barrada pelos funcionários. Como lembrou um artigo recente da revista Veja, “No filme, Cleide chega ao depoimento como uma vítima que apenas se descuidou, sem assumir qualquer responsabilidade pela morte da criança. A trama fictícia lembra o caso real do menino Miguel Otávio Santana da Silva, de cinco anos, que faleceu após cair do nono andar de um prédio de luxo no Cais de Santa Rita, no Centro do Recife, enquanto sua mãe, a então empregada doméstica Mirtes Renata Santana de Souza, passeava com o cachorro de Sari Mariana Costa Gaspar Corte Real, patroa que deixou o menino sozinho. O caso, ocorrido em junho de 2020, ainda está em tramitação e a responsável pela morte de Miguel ainda segue em liberdad e”.[8]

Sendo assim, os corpos largados e ignorados pelo Estado são muito importantes para o filme de 2025. Ao final da trama, o próprio corpo de Marcelo é fotografado em um local público. Segundo uma matéria de jornal, ele foi assassinado por questões pessoais, uma simples vingança. A partir destes corpos, a obra comenta sobre pontos da realidade brasileira que destoam da imagem cordial que o país busca transmitir.

Nesse sentido, uma parte do corpo é fundamental: a perna cabeluda (ou não) encontrada na barriga de um tubarão na praia. A perna humana original foi substituída por uma perna animal, visando esconder um crime cometido pelo delegado da cidade.

O caso merece melhor explicação: o delegado (Robério Diógenes) e seus filhos assassinaram um homem inocente, confundido pelos mesmos como um subversivo. Em plena semana de carnaval, o filme não explica o ocorrido, apenas sugere as motivações e enganos. Os assassinos se livram do corpo, mas a perna aparece em um tubarão coletado pela faculdade local. Novamente, um corpo (ou parte dele) parece surgir do nada para assombrar o Brasil.

Um país que insiste em esconder a violência política somente revela verdades a partir da ficção. Em outro momento, a perna ganha vida e ataca uma praça da cidade.[9] Além de referenciar os filmes de terror de baixo orçamento (filmes B), Kleber Mendonça Filho também cita Tubarão de Spielberg.

Durante o filme, a produção de 1975 estrutura partes importantes do eixo narrativo: o desaparecimento dos corpos das vítimas da ditadura são interpretados a partir dos elementos ficcionais do clássico estadunidense. Kleber Mendonça Filho estabelece uma ponte entre a realidade dos anos 1970 que lhe importa tanto criticar e os filmes que ama. Trata-se de uma escolha estética e política de cunho pessoal. Ela atua de modo crítico, mas apenas reforça um ponto de vista único sobre o país. É divertido, entretêm e provoca uma reflexão, mas não é o melhor jeito de conversar sobre os desaparecidos políticos.

Nós entendemos que o diretor optou por uma situação tragicômica, contudo, a associação pode desagradar alguns setores da sociedade brasileira e esvazia parte da seriedade do debate. Não queremos que ele construa uma dissertação sobre o assunto ou ministre uma aula, mas certas responsabilidades devem ser seguidas. A história é modificada, assim como em outros filmes históricos ficcionais e os problemas e interesses pessoais dos personagens (ou diretor) acabam guiando o discurso histórico. Como reforça Rosenstone: há um peso do indivíduo em filmes históricos dramáticos.[10]

História como dilema pessoal

De modo geral, a história do país é contada a partir dos recursos estéticos que agradam Kleber Mendonça Filho, perdendo alguns pontos importantes e reforçando como as questões pessoais (ficcionais ou não) controlam o discurso histórico. Ele está lidando com a memória acerca da ditadura de um modo singular, preocupado apenas com os próprios interesses.

O cinema São Luiz, por exemplo, tão importante para a trajetória do diretor, se torna ponto da resistência local contra os militares. Lá, o protagonista encontra uma rede de apoio, enquanto a população assiste filmes que moldaram o olhar de Kleber Mendonça Filho. Entre eles, podemos citar O Magnífico (1973), A Profecia e King Kong de 1976.

Inclusive, a trama de O Magnífico também serve de inspiração para o filme brasileiro de 2025. Na obra francesa de 1973, Jean-Paul Belmondo interpreta um escritor de romances de espionagem que se imagina um espião de verdade. Ele vive como um agente secreto ficcional, muito próximo da imaginação que circunda o personagem de Wagner Moura.

Ou seja, os filmes no interior do filme formam uma forma de combate aos agentes opressores da história e do presente no Brasil. A política surge a partir do cinema; os elementos cinematográficos promovem uma leitura histórica. Logo, a história política se perde um pouco na estética. O espectador precisa decifrar tais códigos para chegar até o argumento político. Ele é relevante, mas se fragiliza pelo apelo comercial da obra.

Por se tratar de uma produção voltada ao exterior, com financiamento estrangeiro e intenções de disputar o Oscar, O agente secreto mistura uma trama política convencional aos trejeitos brasileiros, por assim dizer. Na cabeça de Kleber Mendonça Filho, as referências cinematográficas são mobilizadas para criticar os agentes do poder. Tal crítica depende muito da imaginação ficcional, deixando pouco para as dores da realidade.

Não se enganem: o saldo é positivo, mas algumas ressalvas devem ser mencionadas. O filme não tem obrigação de refletir a realidade. Nenhuma obra de arte faz isso. Porém, certas temáticas históricas são mais complexas do que a caçada ao tubarão em uma pequena cidade costeira dos Estados Unidos.

*Guilherme Colombara Rossatto é mestrando em história social na Universidade de São Paulo (USP).

Referência


O agente secreto
Brasil, Alemanha, França, Holanda, 2025, 158 minutos
Direção e roteiro: Kleber Mendonça Filho
Elenco: Wagner Moura, Alice Carvalho, Gabriel Leone, Roney Villela, Hermila Guedes, Tânia Maria, Jr. Black, Robério Diógenes.

Notas


[1] O pesquisador Bento Matias Gonzaga Filho afirma que o cineasta brasileiro, anteriormente, com o curta-metragem Enjaulado (1997), criou um terror que cita os estilos das obras de Roman Polanski, Dario Argento e o próprio John Carpenter. Para mais detalhes, conferir: FILHO, Bento Matias Gonzaga. Kleber Mendonça Filho, o diretor do antigênero cinematográfico: política e sociedade. Revista Alere – Programa de Pós-Graduação em Estudos Literários- PPGEL – Ano 14, Vol. 22, Nº 02, jul. 2020, p. 74.

[2] FILHO, op. cit., p. 82. A questão da memória também é deveras importante para O Agente Secreto.

[3] ROSENSTONE, Robert. A história nos filmes, os filmes na história. São Paulo: Paz e Terra, 2010, p. 77.

[4] KORNIS, Mônica Almeida. Cinema, televisão e história. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2008, p. 19.

[5] Em Bacurau (2019), isto já estava colocado, com uma trama que também incluía a caçada humana, expressa por cenas de ação violentíssimas, que reforçavam uma crítica ao colonialismo e ao imperialismo. Neste filme, contudo, também encontramos influências norte-americanas. A trama atualiza aspectos do enredo de O Alvo (1993), dirigido por John Woo e estrelado por Jean-Claude Van Damme. Além disso, o filme de 2019 apresenta a composição instrumental “Night” em sua trilha sonora, composta por John Carpenter e presente no álbum Lost Themes (2015). Para Bento Matias Gonzaga Filho, Bacurau também alude a outros “[…] filmes de caça a humanos, tipo Zaroff, o caçador de vidas (The most dangerous game, 1932), de Irving Pichel e Ernest B. Schoedsack e Parque da punição (Punishment park, 1971), de Peter Watkins.” (op cit, p. 85). Lógico que Kleber mistura essas tramas ao preconceito sulista em relação ao Nordeste, à população transexual periférica e insere a música “Não Identificado” de Gal Costa nos créditos finais. O diferencial do diretor é moldar referências externas de acordo com os interesses brasileiros. Para ele, há confronto entre o interior do Brasil e o que vem de fora, mas ambos podem formar algo novo a partir desse choque. Os dois elementos devem entrar em contato, para daí, o primeiro assumir a liderança e reagir aos olhares externos. Logicamente, a opção violenta é muito clara na trama de Bacurau, mas não anula as preferências estéticas do diretor pelo cinema de ação estadunidense.

[6] MARTIN, Marcel. A linguagem cinematográfica. Lisboa: Dinalivro, 2005, p. 22.

[7] Equipe Editorial. Trabalhador morre em supermercado no Recife, corpo é coberto por guarda-sóis, e local continua funcionando. Portal G1, Recife, 19 de agosto de 2020. Disponível em: https://g1.globo.com/pe/pernambuco/noticia/2020/08/19/representante-de-vendas-morre-em-supermercado-no-recife-e-corpo-e-coberto-por-guarda-sois.ghtml

[8] HADDAD, Beatriz. Filme O Agente Secreto é baseado em uma história real? Saiba a verdade. Veja, São Paulo, 6 de novembro de 2025. Disponível em: https://veja.abril.com.br/cultura/filme-o-agente-secreto-e-baseado-em-uma-historia-real-saiba-a-verdade/.

[9] A cenas da perna foram inspiradas por matérias sensacionalistas que foram publicadas pela imprensa recifense durante os anos 1970. Ela surgiu como uma piada entre os jornalistas, mas posteriormente, foi interpretada por historiadores como uma reação ao aumento da violência na cidade. A partir daí, a perna cabeluda se tornou parte da mitologia local. Para mais detalhes, ver: Equipe Editorial. O agente secreto: entenda a história da ‘perna cabeluda’, lenda urbana citada no filme de Kleber Mendonça Filho. O Globo, Rio de Janeiro, 10 de novembro de 2025. Disponível em: https://oglobo.globo.com/cultura/noticia/2025/11/10/o-agente-secreto-entenda-a-historia-da-perna-cabeluda-lenda-urbana-citada-no-filme-de-klebe r-mendonca-filho.ghtml.

[10] ROSENSTONE, op. cit., p. 33.

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