O Agente Secreto: nosso cinema como espelho das assimetrias brasileiras
A desmilitarização só será completa quando, além de condenar a violência política, desmontarmos as desigualdades regionais fortalecidas pela ditadura e ainda presentes no país.
Thiago Modenesi/Vermelho
Os filmes de Kleber Mendonça Filho sempre foram um exercício agudo de observação social. Em seu mais recente trabalho, O Agente Secreto (2025), o diretor pernambucano transcende a narrativa de espionagem para erguer um painel contundente e sutil sobre uma das feridas mais profundas do Brasil: as assimetrias regionais, conscientemente agravadas durante a ditadura militar (1964-1985).
O filme, longe de ser um panfleto, utiliza a atmosfera do suspense político para dissecar como o regime não apenas perseguiu dissidentes, mas também orquestrou um projeto de nação que negava o próprio país, desmontando estruturas de desenvolvimento, ciência, pesquisa e inovação no Nordeste para concentrar poder e riqueza no eixo Sul-Sudeste.
O próprio título, O Agente Secreto, opera em múltiplos níveis. Num deles, o agente é o próprio Estado autoritário, que age nas sombras para implementar uma agenda de desmonte, aqui representada por um executivo biônico da Eletrobras e seu filho tosco que o acompanha, ambos agentes dos interesses do regime.
O protagonista, um pesquisador e intelectual cujas atividades são vigiadas, representa a intelligentsia local que se via sob a dupla ameaça da repressão política e do esvaziamento material de suas pesquisas, do seu departamento, de sua companheira e de seus colegas. Através de seus olhos, testemunhamos o cruel estrangulamento de instituições que antes fervilhavam com potencial, servidores do Estado brasileiro, arrancados dos seus ambientes de trabalho, transferidos para as regiões que continham a essência das elites que sustentavam financeiramente a ditadura.
A narrativa inteligentemente não mostra tanques nas ruas de Recife, mas sim a burocracia sombria como instrumento de opressão. Reuniões em salas fechadas, onde se decidem os cortes de verbas para universidades e centros de pesquisa nordestinos, são tão tensas quanto qualquer perseguição clássica de filme de espionagem.
A ameaça não é apenas a prisão, mas a morte por inanição intelectual e econômica. O filme ilustra como a ditadura, sob a justificativa de eficiência, melhor alocação de recursos, fortalecimento de pesquisas em tese mais relevantes e semelhantes canalizou recursos federais massivamente para polos tecnológicos e industriais no Sudeste, tratando o Nordeste não como uma região a ser desenvolvida, mas como um local a ser controlado, explorado, revelando uma visão propositadamente assimétrica de país, que opera as desigualdades como uma forma de concentração e perpetuação do poder.
Kleber Mendonça Filho é particularmente eficaz ao mostrar o impacto humano desse projeto político. Ele não fala apenas em números, mas em vidas interrompidas. Vemos laboratórios que antes tinham equipamentos de ponta sendo reduzidos a depósitos poeirentos, pesquisadores brilhantes sendo coagidos a se calar ou a migrar para São Paulo e trabalhar no metrô da cidade, como o exemplo da pesquisadora gaúcha que vivia em Recife. Fica a sensação de que um futuro promissor estava ali sendo deliberadamente sabotado.
Este é um ponto histórico crucial que o filme resgata: a ditadura desmontou sistematicamente iniciativas que visavam reduzir as desigualdades regionais. Órgãos como a SUDENE (Superintendência do Desenvolvimento do Nordeste), que em sua origem tinha um projeto desenvolvimentista, foi esvaziada e cooptada, tornando-se, em muitos aspectos, um instrumento a serviço dos interesses das oligarquias locais e do capital do Sudeste. O Agente Secreto personifica essa tragédia. A paisagem urbana de Recife, tão cara à filmografia do diretor, torna-se uma personagem melancólica, testemunha de um êxodo de cérebros e de uma estagnação forçada.
A escolha de localizar a história em Recife, e não no eixo Rio-São Paulo, já é em si uma declaração política. O filme se recusa a contar a história da ditadura a partir do centro do poder, optando por mostrá-la a partir da periferia impactada. Essa perspectiva é fundamental para entender a totalidade do projeto autoritário. A violência não era uniforme (perdoem o trocadilho…), ela se manifestava de diferentes formas. Enquanto no Sudeste a repressão se dava sobre uma classe média urbana e um movimento operário organizado, no Nordeste ela assumia contornos de uma dominação colonial interna, negando à região o direito ao autodesenvolvimento.
A concentração de investimentos no Sudeste criou um mar econômico e cultural que isolou ainda mais as outras regiões, um apartheid desenvolvimentista que o filme captura com rara sensibilidade.
O Agente Secreto se afirma como uma obra essencial não por fazer um julgamento explícito da ditadura, mas por iluminar uma de suas consequências mais duradouras e menos discutidas no campo da cultura: a cristalização das desigualdades regionais.
O filme argumenta, de forma eloquente, que o Brasil de hoje, que se ergue com investimentos expressivos em ciência, tecnologia e inovação no atual governo do presidente Lula, luta para superar a sua ciência sucateada e economia desequilibrada por mais de 2 décadas de ditadura militar (pra não falar dos 4 anos de desgoverno Bolsonaro), somos em grande parte herdeiros involuntários de um passivo daquele projeto de nação excludente.
Ao usar o cinema para reabrir os arquivos secretos dessa história econômica e social, Kleber Mendonça Filho nos convida a uma reflexão urgente. O agente secreto do título pode ser um personagem, mas é também a memória soterrada de um projeto de país alternativo, que foi deliberadamente sufocado. O filme nos lembra que a verdadeira desmilitarização da nossa sociedade só estará completa quando não apenas condenarmos a violência política, mas também desmontarmos as estruturas de desigualdade regional que o regime autoritário tão bem fortaleceu e que, até hoje, ainda seguem nos definindo.
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Leia também um poema de Federico García Lorca https://lucianosiqueira.blogspot.com/2025/10/palavra-de-poeta.html

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