09 setembro 2007

DESTAQUE DO DOMINGO

LORETA VALADARES*
por Luciano Siqueira

Carlos,
Tanto sofrimento para tão pouco! Essa é a nona e última versão. Cortei muita coisa que, verificando com calma durante a madrugada, me pareceu supérfluo. Optei, então, por esse registro mais do que breve, duas ou três referências que talvez ajudem o leitor a perceber o que foi a passagem de Loreta pelo Recife. Segue entre parênteses, para sublinhar que se trata de um depoimento anexado ao texto original. Fique à vontade para adotar, ou não, a fórmula. Desculpe. Não fui capaz de escrever coisa melhor. Afetuoso abraço, Luciano

(Foram quase dois anos, entre 1970 e 1972, no Recife. “As memórias são diferentes, o olhar para trás faz trazer emoções e sentimentos diferentes sobre as mesmas experiências vividas conjuntamente”, você escreve. Pois nesse registro – breve, emocionado, saído quase a fórceps – que você não pôde fazer, esse seu camarada apenas anota impressões que permanecem vivas, marcantes.

Você havia saído da prisão há pouco tempo. E surgia diante de nós magrinha, surpreendentemente alva naquele minúsculo biquíni, mergulhando na piscina da chácara em Igarassu onde nos reuníamos clandestinamente numa espécie de encontro municipal. O olhar, a entonação e a cadência das palavras em franco contraste com a aparente fragilidade acentuada pelo nome de guerra, Stela. Pois você falava da resistência às torturas, anunciava convicções – “a ditadura chegará ao fim”, “o socialismo é o futuro” – e insistia sempre, a propósito de qualquer tema posto a debate, citando Lênin: “Sem teoria revolucionária não há movimento revolucionário”. E fazia suas anotações em letra de forma, alinhadas simetricamente. Justificava, brincando, que esse era o modo dialético de organizar o pensamento.

Era um tempo difícil. Morando inicialmente num pensionato, depois em casas de simpatizantes até dividir com duas outras companheiras uma casa pequena de vila, pouco confortável, você assumiu a direção do CZ (Comando Zonal) da AP no Recife, ao lado de duas outras mulheres igualmente bravas, Cida e Marina. Depois também se incorporou o camarada Nicanor, que dava lá motivos para a sua crítica vigilante e às vezes dura. Pois não é que o Nicanor parecia se intimidar diante de você, logo ele, ágil no raciocínio e matreiro no jeito de fazer as coisas! Houve uma reunião lá pros lados de Candeias, litoral da vizinha Jaboatão dos Guararapes, que àquela época era considerada uma praia distante. Nicanor esquecera de avisar aos seus companheiros de moradia (uma comunidade ecumênica em Olinda) que pernoitaria fora. Erro grave. Havia esquecido uma norma elementar de segurança. Teve que ir em casa, corrigir a falha, para evitar que o imaginassem preso. Com prazo rigorosamente estabelecido pelas três mulheres do CZ. Retornou em cima da hora. Ofegante, não escondeu que percorrendo a distância entre o ponto de ônibus e o local da reunião, só pensava na crítica da Stela caso se atrasasse.

- “Aí, camaradas, confesso que rezei.”

Como sobrevivíamos com tão poucos recursos? O apoio dos simpatizantes era decisivo. Mas nos faltava quase tudo – aparelhos para reuniões, dinheiro para a alimentação, para o transporte. O jeito era nos reunirmos caminhando pelas ruas do Recife.

Esse seu camarada, membro da direção regional, a acompanha e a Cida numa longa prestação de contas de algumas horas e muitos quilômetros. É quando você, angustiada, dispara:

- Tem horas que dá vontade de dar um tiro no ouvido, sentar no meio-fio e chorar!

- Idealismo puro, camarada! Pelo menos inverta a ordem, pois se atirar primeiro não haverá tempo para sentar no meio-fio e chorar.

Às gargalhadas, abraçados, seguimos a caminhada e a reunião.

Você era assim. Firme e suave; determinada e doce.

E assim se comportou quando se viu desafiada a conviver com a cardiopatia grave diagnosticada pelos médicos. A seqüência torturante de exames, as consultas demoradas. Teria muito tempo de vida? Não sabia ao certo, apenas seguia com a convicção de que o sentido da sua vida era a revolução e em nome da revolução resistiria. Transmitia isso de modo comovente. Gilvan Thompson, cardiologista, Guilherme Robalinho e Cyro Andrade Lima, clínicos, se diziam impressionados com a coragem da paciente. Aquela sabia lutar pela vida.

O tempo passou, Loreta. Você lutou até o fim – e, como quem luta a vida inteira, viverá sempre. Fica a sua presença e essa saudade, que dói mas é boa de sentir).
*Texto incluído no livro de Loreta Valadares Estilhaços – em tempos de luta contra a ditadura. Edição da Secretaria de Cultura e Turismo, Salvador, 2005. Publicado no portal Vermelho; incluído na coletânea "Como o lírio que brotou no telhado" (Ediutoira Anita Garibaldi; e republicado no site Interpoética.
(setembro de 2007)

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