23 setembro 2007

DESTAQUE DO DOMINGO

Esse código sereno
Otto Lara Resende

Faz mais de ano que não nos vemos, minha velha amiga e eu. Velha é carinho. Mas não precisa apagar a conotação do tempo. Curiosa coincidência. Pensava nela, uns fiapos de reminiscência e ela me aparece assim sem mais nem menos. Um só instante e estamos à vontade. Está bem,muito bem, posso dizer, sincero. Como a lua a mulher tem fase. Você está na lua nova, digo, convicto. Crescente,ela corrige com bom-humor.

Confortável essa atmosfera que se estabelece entre nós. Podemos retomar agora a conversa de um ano atrás. Entro e saio, divertido, por temas e tópicos. Um monossílabo, um sorriso, um olhar e estamos entendidos. Nenhuma explicação se impõe. Nosso código está alerta. No que dizemos há mais do que dizemos. Estou mais loquaz que ela. Mas sem ênfase ou explicação. Também dispenso as meias palavras. Nossas antigas novidades.

Essa imantação recíproca não se improvisa. Deita raízes longe. E é de lá, desse tempo não mencionado, sequer agora sugerido, é de lá que nos vem esse bem-estar. A serena certeza de que estamos bem como estamos. Essa familiaridade que se instala e quase nos dispensa de seguir a pauta de um encontro não programado. Conversamos de ouvido. De ouvido calamos. A tarde calma não traz presságio. Aqui estamos sem pressa nem constrangimento.

No aroma do café bem forte como prefere, há resquícios de uma velha evocação. Sim, como a lembrança está perto do remorso! É um verso do Baudelaire, não? Mas agora não há remorso nem lembrança. Apenas essa doce partilha. Enquanto falo, seus olham para dentro e sorriem. Sei o que vê e de que sorri. Porque sabe que sei, nada me diz. Nem uma simples palavra de passe. A pique de uma pergunta, se levanta e se serve, displicente, de mais café.
(Recebido por e-mail da amiga Gilda Kelner).

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