30 outubro 2008

Efeitos da crise

No Vermelho, por Marcio Pochmann*:
American way of life em xeque

Pela emergência e profundidade da crise financeira internacional, a refundação das bases do capitalismo voltou ao centro dos debates. Cada vez mais se pronuncia a necessidade de construção de um novo Bretton Woods, capaz de desconectar da arquitetura financeira internacional o vírus da desregulamentação geradora de brutal instabilidade. No mesmo tempo que sobra especulação, faltam investimentos produtivos pois, sem o controle público, a economia compromete-se essencialmente com o curto prazo e com o sentido pró-cíclico das atividades econômicas. Assim como potencializa a expansão dos negócios de fôlego restrito, reforça para baixo as atividades produtivas na fase de contração do ciclo.

Nesse contexto de enorme complexidade, o discurso neoliberal de corte aos gastos públicos e maior liberalização do Banco Central torna-se ainda mais retrógrado, parecendo pretender jogar mais álcool na fogueira mundial da recessão econômica e da depressão de preços. Com o fracasso das experiências de auto-regulação do sistema financeiro apoiadas nas agências de classificação de riscos, a queda generalizada no nível de emprego e da renda dos trabalhadores apresenta-se iminente, caso as empresas privadas sigam avançando nas decisões de proteção de suas margens de lucro por meio do enxugamento de custos, enquanto as administrações governamentais procuram reduzir despesas públicas. Diminuição positiva mesmo seria nos serviços financeiros relativos aos enormes gastos com juros do endividamento público e privado.

Esses dois caminhos tão distintos quanto polarizados na gestão dos efeitos da crise financeira global parecem não estar suficientemente atentos aos obstáculos instalados na trajetória que vem sustentando a dinâmica econômica mundial, sobretudo nos EUA. Em grande medida, sabe-se que ela se apóia na difusão do padrão de vida do ''ter'', originado do fordismo americano a partir do início do século 20 e posteriormente generalizado internacionalmente no segundo Pós-Guerra.

Noutras palavras, trata-se do American way of life, que se fundamenta no papel ativo dos serviços financeiros prestados à economia real, com a imposição do endividamento de empresas, governos e famílias atrelado a exigências de investimento e consumo estabelecidas pelas escalas gigantescas de produção. Ademais do consumismo dependente, prevalecem também impactos ambientais inegáveis, que somente no período mais recente passaram a ser percebidos como insustentáveis no planeta Terra.

Na economia americana, constata-se que o grau de endividamento médio anual dos habitantes relacionado ao nível de poupança individual chegou a limite máximo. Em 2008, por exemplo, a dívida por habitante nos EUA era de US$ 118 mil para uma poupança per capita de US$ 392. Ou seja, a poupança média anual por habitante representa somente 0,3% do total do endividamento individual. Meio século antes, em 1958, a dívida individual alcançava a soma de US$ 24,8 mil, ao passo que a poupança média anual por habitante era de US$ 4,2 mil, equivalente a 17% do endividamento pessoal.

Com isso, percebe-se que até o final da década de 1960, por exemplo, parecia haver conexão relativamente adequada entre o movimento das finanças e o nível de produção e consumo. Nota-se claramente que no ciclo de expansão econômica do Segundo Pós-Guerra (1947 a 1973), a poupança média anual por habitante passou de US$ 1,8 mil para US$ 7,4 mil, enquanto a dívida média anual cresceu de US$ 9,7 mil para US$ 40,1 mil. Em síntese, poupança e dívida média anual por habitante cresceram no mesmo ritmo (4,1 vezes).

Mas, com o desmoronamento do sistema financeiro internacional durante a primeira metade da década de 1970, quando o dólar deixou de ter paridade com o ouro – as taxas de juros passaram a ser flutuantes, geralmente acima da inflação –, e a desregulamentação ganhou ênfase, dois mundos distintos terminaram sendo recriados: o das finanças e o da produção e consumo. Pelo processo de financeirização da riqueza, os serviços com o endividamento cresceram exorbitantemente, deslocando-se do sistema de produção e consumo. Entre 1973 e 2007, por exemplo, a poupança média anual por habitante nos Estados Unidos decaiu de US$ 7,4 mil para US$ 449, enquanto a dívida aumentou de US$ 40,1 mil para US$ 121,6 mil. Para uma queda de 93,4% na poupança média anual individual, houve o aumento de três vezes no total da dívida por habitante.

Outra forma emblemática de constatar o descolamento dos ganhos financeiros em relação ao sistema produtivo pode ser identificada na comparação do PIB com a quantidade de recursos aplicados em derivativos. Em 2007, por exemplo, o PIB mundial alcançou o patamar de US$ 54,6 trilhões, segundo informações oficiais do FMI. Em contrapartida, o volume dos direitos de riqueza contabilizado no sistema financeiro mundial alcançou o montante de US$ 596 trilhões, em conformidade com o relatório do banco dos bancos centrais (BIS).

Essa diferença de mais de dez vezes entre o montante dos direitos à riqueza e o tamanho da própria riqueza produzida pela economia real revela grande parte das dificuldades atuais para reconectar novamente os serviços das finanças à dinâmica da economia real. Ademais do enquadramento necessário do sistema financeiro às necessidades da economia real, coloca-se em xeque as exigências do mundo da produção e consumo na economia do ter.

O seu necessário revigoramento não deveria ser nas mesmas bases destrutivas do meio ambiente. É nesse sentido que o desafio atual coloca-se não apenas no enfrentamento da crise financeira internacional, mas na construção de alternativas ambientalmente sustentáveis ao american way of life.
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* Marcio Pochmann é presidente do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) e professor licenciado do Instituto de Economia e pesquisador do Centro de Estudos Sindicais e de Economia do Trabalho da Universidade Estadual de Campinas.
Artigo originalmente publicado no Valor Econômico (30/10)

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