O Doutor Goteira e os efeitos da onda neoliberal
Luciano Siqueira
O apelido tinha a ver com o seu ofício: consertar instalações hidráulicas e vazamentos em residências. Era daí que tirava o sustento da família, vivendo em casa de madeira no Coque, uma das mais antigas áreas de ocupação irregular no Recife. Só tinha um luxo: desfilar na comissão de frente da troça carnavalesca do bairro, fantasiado a rigor. E um sonho: participar de uma revolução popular no Brasil.
Recrutado para o PCdoB nos anos setenta, certa vez marcamos encontro às 8 da manhã numa rua do centro da cidade, de onde o levaria para uma reunião clandestina. Cheguei na hora certa, dentro do rigor da militância clandestina. Mas ele logo protestou: - Camarada, estou aqui desde as seis e meia da manhã e você chega agora! E ao ouvir minha ponderação de que chegara na hora marcada, pontualmente, não se fez de rogado: - Mas eu vim logo para adiantar o serviço!
A boa intenção do nosso Dr. Goteira (Valentim era seu nome de batismo) ao chegar tão cedo ao “ponto” poderia ter provocado resultado diverso: chamar a atenção dos “tiras” e resultar em nossa prisão.
Na vida é assim. Nem sempre as coisas acontecem como desejamos. Ou como são proclamadas.
Mutatis mutandis, como dizem os juristas, é o caso da onda neoliberal que tomou conta de boa parte do globo a partir dos anos setenta. Diziam os seus arautos que a desregulamentação das transações financeiras e a livre circulação do capital num mundo agora concebido sem fronteiras proporcionariam uma espécie de relançamento do sistema capitalista então envolto por tendência estagnante, puxada pela queda gradativa da taxa média de lucro. Mais: para recuperar a capacidade de reinvestimento, tudo deveria ser feito para reduzir custos, a começar da regressão de direitos nas relações de trabalho em função de ampliar a extorsão da mais-valia relativa e absoluta.
As atividades econômicas ganhariam novo dinamismo e seria facilitado o acesso ao emprego.
Aconteceu algo muito diferente: a financeirização da economia e a precarização das relações de trabalho.
Livre de mecanismos de regulação, o capital se transferiu em larga escala do setor produtivo para o financeiro. No lugar da produção, a especulação: estima-se que mais de 90% das trocas econômicas no mundo já não dizem respeito a bens e serviços, mas a compra e venda de papéis, que não geram nem riqueza, nem emprego. Apenas propiciam uma estranha defasagem entre a economia virtual (movida a registros contáveis estratosféricos) e a economia real (as riquezas efetivamente produzidas), numa escala de cinco para um.
O restante do enredo estamos vendo agora. A ficção desabou e a realidade explode fragmentada em mil pedaços. A recessão, a incerteza e o desemprego assolam o mundo.
O velho Dr. Goteira já não vive entre nós. Mas bem que aprenderia com esse exemplo de negação prática de intenções proclamadas. Entre o desejo e a realidade há uma distância que só pode ser vencida com orientação justa e procedimentos assentados na verdade dos fatos. www.lucianosiqueira.com.br
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