30 junho 2013

A vida do jeito que é

Ainda o Recife
Marco Albertim, no Vermelho

Cena 1 - A lisonja do PM

O motoqueiro estendido na rua escassa de veículos, bem que é indício de que não há vítimas do acaso; com ou sem tragédia. A avenida Conde da Boa Vista é um sorvedouro. Não fosse o motoqueiro com a perna esquerda dobrada, presa pelos dois punhos das mãos, o cenário seria de desolação na nudez granítica do chão cinzento. Ele prende a perna para estancar a dor; não geme, inda que o rosto se retorça no ricto da agonia.

O PM mantém a superfície da ponta do coturno sob a bacia do motoqueiro, sobre um arremedo de tapete; supõe, o PM, que está aliviando o sofrimento do moço de bermuda desbotada, barba crespa e rosto curtido na exposição diária ao so l que incide no asfalto, nos paralelepípedos desordenados que dão acesso aos morros do Recife. Calma, rapaz... - repete o PM. Na voz, há um misto de ordem e censura. Em sua volta, ou em volta do acidente que pode ser o prelúdio de uma tragédia maior, há outros PMs e um ajuntamento ralo de curiosos. O militar não quer perder a chance de esfregar-se na lisonja - Eu já botei o tapete pra você não sentir dor. Calma...

A ambulância do SUS não tem dificuldade de acesso ao local. Os PMs seguem para o Derby, são absorvidos pela multidão de moços que ocupam um dos lados da praça. Não há agitação, ainda não há, só alguns apitos estridentes nas bocas de moços de bermuda, moças com shorts curtos, esfiapados nas bordas. Têm a cara pintada, alguns, um traço preto e outro verde em cada lado do rosto. Não estão expostos ao sol porque a sombra das palmeiras e oitizeiros da Praça do Derby, concede-lhes o conforto irrecusável de um convescote no protesto. O sorveteiro tem um ganho a mais; o pipoqueiro e o vendedor de água. O preço é um real mais salgado. Ninguém se queixa. Só o colorido de faixas e cartazes grita do mal-estar dos transportes, da precariedade dos serviços públicos.

Cena 2 - Um beijo e levantar acampamento

Encostado ao tronco da palmeira, ela com a nuca no colo do parelho, o casal se beija; dir-se-ia um gole profundo de línguas ao abrigo da curiosidade alheia, na proteção da estridência dos apitos.

Levantar acampamento! Não se ouve a sonoridade da ordem, só a bruma pardacenta das quatro da tarde instiga os moços a ocupar a avenida. A multidão segue rala a avenida Agamenon Magalhães; encorpa-se em frente ao Hospital da Restauração. Uma faixa branca com letras pretas indica o rumo da marcha - Vamos ao Centro de Convenções. Lá, o governador Eduardo Campos está despachando. Na frente da faixa, deficientes físicos, uns em cadeiras de rodas, outros segurando-se em muletas, erguem pequenas cartolinas com reivindicações próprias do segmento.

Feito uma cobra numa incursão cega, a multidão gritando desvia-se em cada uma das pontes do canal da avenida; quer ocupar os dois lados do canal. A patrulha de vinte PMs segue-a, caminhando na calçada entre o canal e o meio-fio. No viaduto da João de Barros, ocupa a margem esquerda. Do alto do viaduto sem trânsito de carros, os fotógrafos tiram proveito do ângulo em comprimento. Motoqueiros, como num camarote, refestelam-se na almofada do assento. Adiante, depois de ocupar a margem direita do canal, a marcha espera os profissionais de saúde que, de branco, descem o viaduto numa marcha própria. Incorporados à cauda da passeata, dão a impressão de que dez mil são donos da avenida.

Um moço, cujo rosto trigueiro é marcado por varíola cicatrizada, sorri à chance de protestar a seu modo. Um ônibus está parado na margem da avenida; os passageiros não reclamam da interrupção do trânsito. O moço expõe a animosidade anárquica, com bordoadas na lataria. Logo o major, comandante da patrulha, corre em direção ao moço; segura-o num dos braços; o trejeito é de quem vai quebrar a junta do braço com o antebraço. O moço esboça um riso contrafeito, não consegue se mostrar acima da dor. O major hesita vendo a bochecha imberbe do moço; empurra-o para longe do ônibus, tem o apoio dos manifestantes. Sem violência, grita um dirigente da UESPE, no comando de sua turba.

Minutos de pânico depois do cruzamento com a rua Odorico Mendes. São bombas, rojões estrondosos que dispersam parte da multidão. A patrulha da PM corre para cima. Pedras são atiradas por moços da localidade. Não há feridos. Ainda se veem no chão cinzas de colchões queimados; houvera, pela manhã, protesto por mais moradias.

Ao lado do viaduto da Tacaruna, a manifestação esbarra na barreira de policiais apoiados em gradis improvisados de ferro. Na retaguarda, o choque de cinquenta PMs, todos com escudos de proteção, fica à espreita. Não há como passar, não há como ter acesso ao Centro de Convenções. Dirigentes da UESPE negociam com o oficial comandante da barreira.

- Sinto muito - diz o oficial de baixa estatura, sem desígnios de truculência nos olhos.

A turba grita. A rua é do povo! O negror da noite não põe fim à inquietação juvenil. Do alto, no viaduto, as câmeras tiram proveito dos derradeiros lances.

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