Iceberg de duas pontas
Luciano Siqueira
Publicado no portal Vermelho e no Blog de Jamildo (Jornal do Commercio Online)
Uma imensa insatisfação com a qualidade dos serviços públicos e um sentimento de rejeição a tudo o que aparece como expressão da política tradicional – eis as duas pontas desse gigantesco iceberg que surge e se espraia pelas ruas do País através de manifestações de protesto.
Pesquisas permitem uma síntese possível das bandeiras espontaneamente alevantadas nas manifestações, que coloca a saúde no pódio dos serviços públicos cuja qualidade é questionada, seguindo-se a educação, o transporte, a segurança e a assim por diante. Reflexo de uma defasagem real entre a demanda - que se expande em nossas cidades, na proporção em que, nos últimos dez anos, inúmeras e inquestionáveis conquistas têm sido acumuladas, na esteira da expansão das oportunidades de trabalho, do crescimento da massa salarial e do ingresso no mercado de consumo – a capacidade de resposta dos governos. Num cenário que ganhou forma em apenas cinco décadas – dos anos 30 aos anos 80 do século passado -, caracterizado pelos estudiosos como “explosão urbana”, as conquistas obtidas se traduzem, a um só tempo, numa dupla sensação: de possibilidade de melhora da qualidade de vida e da necessidade de melhorar mais ainda.
A novidade é que essa dupla sensação emerge com tamanha força, que extrapola os limites dos movimentos sociais organizados. Daí o paradoxo: as reivindicações que vêm agora à tona constam das pautas de sindicatos e centrais sindicais, entidades estudantis nacionais e locais, organizações populares comunitárias e entidades democráticas ocupadas com questões gerais que dizem respeito às condições de existência nas cidades; entretanto, boa parte dos manifestantes não as reconhece como preexistentes, nem se sente representada por tais organizações.
De outra parte, faz-se compreensível a rejeição a partidos políticos e detentores de mandatos, alvos de ataque intenso, sistêmico e continuado por parte da mídia nos últimos anos. À primeira vista, poucos escapam à percepção negativa por parte das multidões – e assim mesmo correm o risco de serem confundidos com os que efetivamente praticaram atos ilícitos e merecem a repulsa da população.
Mas se assim é, como está não vai ficar. Ou bem a onda de protestos ganha sentido conseqüente e se direciona para a busca de soluções reais a serem negociadas junto aos poderes públicos, ou mergulha na dispersão; ou, pior ainda, se deixa levar pelo canto da sereia da direita, na espreita e sempre pronta a conspirar contra a ordem democrática.
Em ouras palavras, segue em disputa o sentido e o rumo da explosão urbana, pondo em pólos opostos forças que historicamente se organizam e se movimentam em favor dos pleitos ora levantados versus correntes oportunistas de variados matizes que nada têm a oferecer, senão a regressão social e de direitos. O desdobramento depende de muitos fatores, sobretudo da capacidade de discernimento da grande maioria insurreta, que não pode ser subestimada.
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