13 janeiro 2019

Uma crônica do cotidiano


Tem que andar de ônibus
Melka Pinto

Tem que andar de ônibus e metrô se quiser conhecer o povo, se quiser, claro, se não quiser mantenha-se no seu carro, com vidros fechados e playlist a gosto. Mas se quiser conhecer o povo, ande de ônibus e de metrô. Se quiser ver a realidade do povo, as necessidades do povo, procure a parada de ônibus mais próxima de sua casa e boa viagem à realidade, as tantas realidades que nos cercam. 

Hoje de manhã debaixo do sol escaldante e nada acolhedor de Recife, no largo da encruzilhada, uma senhora me cutuca repentinamente:

- Aquele ali é o dois irmãos? não, aquele é o cdu. 

Ela tá de óculos, pela abordagem percebi que ela poderia não saber ler. O rio doce/cdu e o rio doce/dois irmãos tem a mesma cor, eu mesma já peguei um pensado que era o outro umas duas vezes, muita gente pega ônibus "pela cor", é verdade, mesmo sabendo ler, mas imagina que não sabe? 

Expliquei pra ela:

- Tá vendo que esse que tá vindo tem um nome grande e depois muda pra um nome pequeno? o que a senhora vai pegar tem essa cor, mas tem dois nomes grandes. certo?

Ela disse que entendeu, mas se não entendeu tem o moço, que passa o dia todo debaixo daquele sol vendendo água e pipoca, que sabe dar todas as informações que qualquer pessoa que vá pegar ônibus naquela parada precise. 

Sigo viagem, cumpro meus compromissos e retorno a parada de ônibus, outra parada, com outros vendedores, nessa reparei ontem numa vendedora, senhora de idade, cuidando de uma menininha que não devia ter ainda dois anos, imaginei que fosse avó, a menina não parava, até eu poder ver a senhora ninando ela pra dormir, tava quente, não sei onde ela colocaria a pequena depois que caísse no sono, pensei muitas coisas, espero que você esteja pensando também. 

Mas queria falar de hoje, ela estava lá, sem a menininha, reparei que além do isopor com água, tinha uma bacia de manga espada pra vender, um ônibus parou, até falei um pouco com o motorista pedindo informações, uma senhora que estava dentro do ônibus fazia sinal que queria alguma coisa de fora, então eu falei, "diga, o que você quer, eu pego", enquanto vigiava que o sinal ainda estava fechado, a senhora vendedora chegou apressada com uma água na mão, mas ela queria comprar mangas, no caso quem as vendia era um rapaz que estava próximo.

Quando entendemos o que ela queria, o sinal abriu. O motorista levou o ônibus e mais na frente parou, não sei se por solicitação da senhora, ou apenas empatia. O rapaz levou as seis mangas e recebeu seus dois reais, quando ele entregou a mercadoria e pegou o dinheiro ainda falei "agradeça ao motorista!" que concordou na mesma hora, "obrigado!"

Ele olhou pra mim satisfeito e fez:

- Sabe por que ele fez isso? porque ele viu que podia ter sido a mãe dele.

Eu ri e concordei:

- É verdade!

Fiquei pensando, quem só anda de carro não consegue reparar nessas pequenas coisas, nessas miudezas que retratam tantas outras coisas tão grandes. Tem que andar de ônibus se quiser conhecer o povo. Se não quiser, não chegue nem perto. As paradas de ônibus e os ônibus estão lotadas de lutas do povo, de necessidades do povo, de realidades do povo.

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