Tem que andar de ônibus
Melka Pinto
Tem que andar de ônibus e metrô se quiser conhecer o povo, se quiser, claro, se não quiser mantenha-se no seu carro, com vidros fechados e playlist a gosto. Mas se quiser conhecer o povo, ande de ônibus e de metrô. Se quiser ver a realidade do povo, as necessidades do povo, procure a parada de ônibus mais próxima de sua casa e boa viagem à realidade, as tantas realidades que nos cercam.
Melka Pinto
Tem que andar de ônibus e metrô se quiser conhecer o povo, se quiser, claro, se não quiser mantenha-se no seu carro, com vidros fechados e playlist a gosto. Mas se quiser conhecer o povo, ande de ônibus e de metrô. Se quiser ver a realidade do povo, as necessidades do povo, procure a parada de ônibus mais próxima de sua casa e boa viagem à realidade, as tantas realidades que nos cercam.
Hoje de manhã debaixo do sol
escaldante e nada acolhedor de Recife, no largo da encruzilhada, uma senhora me
cutuca repentinamente:
- Aquele ali é o dois irmãos? não,
aquele é o cdu.
Ela tá de óculos, pela abordagem
percebi que ela poderia não saber ler. O rio doce/cdu e o rio doce/dois irmãos
tem a mesma cor, eu mesma já peguei um pensado que era o outro umas duas vezes,
muita gente pega ônibus "pela cor", é verdade, mesmo sabendo ler, mas
imagina que não sabe?
Expliquei pra ela:
- Tá vendo que esse que tá vindo
tem um nome grande e depois muda pra um nome pequeno? o que a senhora vai pegar
tem essa cor, mas tem dois nomes grandes. certo?
Ela disse que entendeu, mas se não entendeu tem o moço, que
passa o dia todo debaixo daquele sol vendendo água e pipoca, que sabe dar todas
as informações que qualquer pessoa que vá pegar ônibus naquela parada precise.
Sigo viagem, cumpro meus
compromissos e retorno a parada de ônibus, outra parada, com outros vendedores,
nessa reparei ontem numa vendedora, senhora de idade, cuidando de uma menininha
que não devia ter ainda dois anos, imaginei que fosse avó, a menina não parava,
até eu poder ver a senhora ninando ela pra dormir, tava quente, não sei onde
ela colocaria a pequena depois que caísse no sono, pensei muitas coisas, espero
que você esteja pensando também.
Mas queria falar de hoje, ela
estava lá, sem a menininha, reparei que além do isopor com água, tinha uma
bacia de manga espada pra vender, um ônibus parou, até falei um pouco com o
motorista pedindo informações, uma senhora que estava dentro do ônibus fazia
sinal que queria alguma coisa de fora, então eu falei, "diga, o que você
quer, eu pego", enquanto vigiava que o sinal ainda estava fechado, a
senhora vendedora chegou apressada com uma água na mão, mas ela queria comprar
mangas, no caso quem as vendia era um rapaz que estava próximo.
Quando entendemos o que ela
queria, o sinal abriu. O motorista levou o ônibus e mais na frente parou, não
sei se por solicitação da senhora, ou apenas empatia. O rapaz levou as seis
mangas e recebeu seus dois reais, quando ele entregou a mercadoria e pegou o
dinheiro ainda falei "agradeça ao motorista!" que concordou na mesma
hora, "obrigado!"
Ele olhou pra mim satisfeito e fez:
- Sabe por que ele fez isso?
porque ele viu que podia ter sido a mãe dele.
Eu ri e concordei:
- É verdade!
Fiquei pensando, quem só anda de
carro não consegue reparar nessas pequenas coisas, nessas miudezas que retratam
tantas outras coisas tão grandes. Tem que andar de ônibus se quiser conhecer o
povo. Se não quiser, não chegue nem perto. As paradas de ônibus e os ônibus
estão lotadas de lutas do povo, de necessidades do povo, de realidades do povo.
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