Um fascista é, antes de tudo, um macho assustado
Jornal GGN
Em suas primeiras
palavras como presidente, Jair Bolsonaro apontou a “ideologia de gênero” como o
principal inimigo, e sua ministra Damares Alves prometeu meninos de azul e
meninas de rosa. O binarismo de gênero, embora continue dominante, é percebido
como uma ameaça: como o bolsonarismo o transformou no grande laboratório de sua
restauração conservadora?
A reportagem é
de Gabriel Giorgi, mestre em Sociosemiótica pela Universidad Nacional de
Córdoba e doutor em Spanish and Portuguese pela New York University, onde
atualmente é professor, publicada por Página/12, 11-01-2019. A tradução é de
André Langer.
Em
um ato de festiva declaração de guerra, Damares Alves, a nova ministra da
Mulher, Família e Direitos Humanos do Governo de Jair Bolsonaro, anunciava que “no
Brasil, começa uma nova era: menino veste azul e menina veste rosa”, diante do
aplauso e da excitação dos presentes. Ela disse isso em um tom infantilizado:
como aquele inesquecível “queremos papai e mamãe” aclamado em nossas ruas por
sessentões e sessentonas durante o debate sobre o casamento igualitário, aqui a
nova ministra – na ocasião pastora evangélica – também ativa a infância como
teatro da restauração conservadora.
Esta
evocação da infância como núcleo de valores conservadores não é nenhuma novidade.
Mas é, sem dúvida, notável a ideia de uma “nova era” em que, na contramão de
toda novidade, o que se pretende é reforçar a imagem anquilosada da ordem
patriarcal que, no entanto, é apresentada como a inauguração de um novo tempo.
O que é essa “nova era” que se assemelha tanto ao presente quanto, sobretudo,
ao passado? Ao ouvir o discurso de Alves, uma historiadora do futuro se
perguntará se, em 2016 ou 2017, a sociedade brasileira era uma sociedade que
tinha efetivamente eliminado e perseguido o binarismo sexual, se “Brasil”
indicava uma utopia pós-gênero em que o reino do azul e rosa devia ser imposto
a ferro e fogo.
Aparentemente
(e contra a mais gritante evidência da ascendente violência patriarcal e
heterossexista em seu país), para a ministra Alves é assim. Não atribuamos esse
gesto a uma loucura extemporânea ou a um deslize místico. O gesto de instaurar
e “fazer como se” houvera – com a teatralidade do caso – uma sociedade dominada
pelo feminismo e pelos movimentos GLTTBI é, penso eu, um dos truques que mais
renderam ao bolsonarismo. O “como se” tornado realidade: como se o patriarcado
tivesse sido abolido e martirizado, como se as feministas, gays e lésbicas
tivessem governado, como se a sociedade estivesse cativa do poder absoluto das
pessoas trans. Agir “como se”, e produzir realidade a partir daí. E agora, com
o Estado em suas mãos para levar adiante essa produção de realidade.
O
gesto de Alves encontra o seu campo de ressonância, claro, no discurso do
próprio Bolsonaro, que insistiu, previsivelmente, na palavra “ideologia”.
Ideologia de gênero, evidentemente, mas também “amarras ideológicas”, na
“submissão ideológica”, nas limitações do “politicamente correto”, que são os
modos pelos quais uma sociedade democrática trabalha sua linguagem para acomodar
vozes diferentes. Isso, para Bolsonaro, é “ideologia”. Contra isso, ele
contrapõe, claro, a religião e “nossos valores”, condensados no binarismo de
gênero. Religião e valores não correspondem, no mundo Bolsonaro, a nenhuma
ideologia. Assim como azul/rosa: a não-ideologia. O binarismo de gênero como a
prova, a “veridicção” diria Foucault, de que ali não há ideologia.
Porque
o que parece caracterizar o bolsonarismo, e que chega a tantas outras regiões
deste presente em guerra, é o esforço, a insistência e a necessidade de
enfatizar, violenta e laboriosamente, distinções de gênero que, embora
continuem dominantes são percebidas como ameaças. Repisar com varão/mulher,
masculino/feminino, azul/rosa, com a família cisnormativa e heteronormativa,
para renaturalizar hierarquias que tinham sido, mesmo que timidamente,
desafiadas. Renaturalizar: recolocar uma Natureza mítica (patriarcal, racista,
heteronormativa, classistas) que os movimentos populares das últimas duas
décadas puseram, em diferentes graus e não sem tensões, em questão. Recolocar
uma suposta Natureza mítica – pura fantasia normativa – disputada e contestada
pelas lutas políticas. E contrapô-la a essa “ideologia” denunciada por
Bolsonaro, que não é outra coisa senão aquilo que em outros lugares chamamos,
de maneira mais simples e mais direta, de “direitos”.
Renaturalizar
o azul e o rosa para sufocar as lutas que os identificaram como construções
históricas e que disputaram a igualdade nesse campo. Para restaurar a partir
daí hierarquias raciais, de classe, étnicas, nacionais. O gênero, então, como
laboratório de uma restauração conservadora em geral: aí se pode ler uma das
operações do bolsonarismo.
Que
não fiquem dúvidas: a guerra declarada contra a “ideologia” (de gênero, da
“correção política”, etc.) é uma guerra contra os direitos adquiridos. Excluir
a comunidade LGTTBI das comunidades protegidas pelos direitos humanos – foi uma
das primeiras decisões do governo Bolsonaro – indica claramente do que se está
falando quando se fala de um governo “não-ideológico”.
Há,
no entanto, algo efetivamente novo neste carnaval da restauração conservadora.
Nunca, tanto quanto me lembro, um presidente e um governo se concentraram de
maneira tão claramente, tão insistentemente e tão vigorosamente na norma de
gênero como problema central da política. São muitos, é claro, aqueles que
invocavam “a família”, ou – um clássico – “os valores tradicionais”. Mas nunca
o gênero como campo de batalha político-cultural.
Aqui
se torna um dos três principais inimigos mencionados por Bolsonaro: corrupção,
criminalidade e “ideologia de gênero”, no mesmo plano. O gênero emerge no
centro de uma agenda do governo, de modo explícito e beligerante. Isso diz
muito, sem dúvida, sobre o ódio alucinado, quase lisérgico, que perpassa as cabeças
desses personagens. Mas diz, sobretudo, muito sobre os avanços que conseguimos
fazer, e da escala do desafio que conseguimos ativar e do tamanho da ameaça que
sentem as e os conservadores do mundo. Diz muito sobre um feminismo e de um
movimento LGTTBI que traçaram o terreno a que essas pessoas reagem e respondem
com inusitada violência.
Saibamos
escutar no ódio estridente e na triste banalidade desses discursos o tremor de
um mundo que desmorona. Esse rumor pode nos guiar nas grandes batalhas que
estão por vir.
Será,
talvez, o momento de atualizar a clássica sentença de Theodor Adorno sobre o
fascista como um burguês assustado. Porque no despontar da segunda década do
século XXI tudo parece indicar que um fascista é, antes de tudo e de modo cada
vez mais transparentes, um macho assustado.
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