Violência: armas apontadas para elas
Incentivo ao armamento e
corte de 90% das verbas para combate à violência doméstica são parte da receita
misógina de Bolsonaro. Assassinatos, ameaças e tortura dispararam. Hoje, 1 em
cada 4 homicídios de mulheres ocorre dentro de casa
Carolina Ricardo e Natália Pollachi na Piauí
O país acompanhou
aterrorizado as imagens da execução de Michelli Nicolich, assassinada em São
Paulo na semana passada pelo seu ex-marido, Ezequiel Lemos Ramos, pai da
criança de 2 anos que ele também matou. O agressor era registrado pelo Exército
como CAC (categoria que inclui caçadores, atiradores e colecionadores) e já
havia sido denunciado por Michelli por ameaças de morte. Ele chegou a ser preso
preventivamente, e a delegada responsável pelo caso
solicitou corretamente a apreensão de duas armas que ele mantinha em casa, além da suspensão do registro de Ramos junto ao
Exército.
A legislação brasileira permite que, em caso de acusação de violência
doméstica, o registro de armas do denunciado seja imediatamente suspenso e que
seja solicitada a apreensão cautelar das armas. Tal possibilidade foi incluída
na Lei Maria da Penha em 2019, por meio da Lei n.º 13.880, cuja tramitação contou com
apoio de várias organizações da sociedade civil, entre elas o Instituto Sou da
Paz.
Veja: De poeta para poeta em defesa
da democracia https://bit.ly/3DLZpMN
O agressor de Michelli, no entanto, teve a prisão preventiva convertida
em uso de tornozeleira eletrônica como medida cautelar alternativa. Assim que a
ex-esposa se mudou para São Paulo, esse uso não foi mais considerado necessário
pela Justiça. Quatro meses após o boletim de ocorrência de ameaça, ele viajou
mais de 1 mil km e usou uma terceira arma para cometer o duplo assassinato em
plena luz do dia.
Esse caso reflete muitas questões estruturais e urgentes do país. De
imediato, evoca a necessidade de colocar em prática políticas públicas
multissetoriais e constantes para reforçar a igualdade de direitos em um país
marcado pelo machismo estrutural. Graças a ele, nós, mulheres, ainda somos
vistas como cidadãs de segunda categoria, como propriedades das nossas famílias
ou companheiros, corpos à disposição, predestinadas a realizar o trabalho não
remunerado de cuidado doméstico e familiar que viabiliza o funcionamento da
sociedade.
O assassinato de Michelli Nicolich também explicita a necessidade
urgente de rever o descontrole no acesso a armas e munições. O governo
Bolsonaro desfigurou a legislação do setor por meio de decretos e portarias,
boa parte legalmente questionáveis (havendo decisões do STF que suspendem
parcialmente algumas das medidas). Os pronunciamentos públicos do presidente
incentivam uma corrida armamentista diária. O resultado é inquestionável: mais
que dobrou a quantidade de armas em mãos de pessoas comuns, especialmente as
registradas como CACs – que podem comprar maiores quantidades, tipos mais
potentes e não precisam justificar sua necessidade.
Ao mesmo tempo, o governo deliberadamente atrasou investimentos em
tecnologia de controle e fiscalização dessas armas. Isso fez com que até hoje
as polícias estaduais não possam consultar o sistema do Exército em que as
armas de CACs estão registradas. Já foi confirmado que o agressor tinha uma
terceira arma registrada em seu nome, possivelmente a arma usada no crime.
Independentemente de ter sido usada ou não, essa terceira arma não foi
imediatamente identificada e apreendida no momento da primeira denúncia pela
falta de acesso das polícias ao sistema do Exército – que, por sua vez, também
tardou a cooperar no fornecimento dessa informação.
Fiscalização eficaz e respostas rápidas são essenciais para mitigar
riscos. As mulheres brasileiras sabem que critérios objetivos para adquirir uma
arma, como não ter antecedentes criminais, ter um emprego fixo e ter feito um
teste psicológico até dez anos antes, não são garantias suficientes. Boa parte
das agredidas são vitimadas por ex-companheiros ou familiares, pessoas que
antes detinham sua confiança, o típico “cidadão de bem”.
Não é à toa que a rejeição da política armamentista é mais alta nesse
grupo. Enquanto o porte generalizado de armas é rejeitado por 83% do público, a
rejeição sobe para 88% entre mulheres, segundo pesquisa Datafolha realizada em
junho de 2022. Ao contrário do que afirmam seus defensores, a ampliação do
porte é apoiada por apenas 15% da população, uma pequena minoria composta
majoritariamente por homens, brancos e de alta renda – um perfil de
beneficiários que coincide com a maior base do atual governo e com a tentativa
de reafirmação de papéis tradicionais de gênero que as armas também carregam. É
simbólico dessa priorização que o mesmo governo que publicou mais de quarenta
normas para facilitar o acesso a armas tenha cortado em 90% a verba para
proteção de mulheres.
Leia também: O ódio às
mulheres desmascarado https://bit.ly/3NAdNch
Essa
retórica armamentista e toda a indústria que dela se alimenta têm disseminado o
argumento, importado dos Estados Unidos, de que armas serviriam ao
empoderamento feminino, gerando super-heroínas invencíveis. Ocorre que essa
ideia não tem respaldo em dados de realidade, que indicam que mais armas geram
mais violência em cenários de desigualdade social e que as chances de reação
armada bem-sucedida são baixas. Funciona ainda menos em casos de violência
doméstica, situações de profunda vulnerabilidade psicossocial, dependência
econômica e baixa capacidade de reação em um duelo caseiro. Para fortalecer
essas mulheres, é preciso consolidar uma rede de apoio de políticas públicas
capazes de oferecer suporte psicológico, abrigo emergencial e capacitação
profissional para mantê-las longe do agressor, assim como um sistema de justiça
e segurança pública apto e eficiente para responsabilizá-lo.
Dados
do Ministério da Saúde indicam que 51% das mulheres mortas por
agressão foram vitimadas com armas de fogo e que 70% delas eram mulheres
negras. De 2012 a 2019, a proporção dessas mortes que ocorreu dentro de casa,
forte indício de violência de gênero, subiu de 1 a cada 5 casos para 1 a cada
4. Além das mortes, a arma dentro de casa é um forte elemento para a prática de
ameaças físicas e de violência psicológica, além de dificultar a ruptura do
relacionamento abusivo ou mesmo a denúncia por parte da mulher.
Com
o aumento da participação de arma de fogo na morte de mulheres por violência de
gênero, é fundamental disseminar a determinação da Lei n.º 13.880 para que as
armas dos agressores sejam apreendidas, que todas as delegacias passem a
aplicar a regra e que as mulheres saibam que essa é uma medida de proteção disponível.
Como os bancos de armas de CACs não estão disponíveis para as polícias
estaduais, é urgente que o Exército acelere essa evolução tecnológica e reveja
processos para garantir que todas as armas e autorizações de compra em nome de
acusados de agressão sejam identificadas e recolhidas. É importante também
entender se a Justiça poderia ter mantido o monitoramento eletrônico ou outras
medidas cautelares, considerando a gravidade das ameaças.
É
essencial entender e corrigir todas as falhas que resultaram no assassinato de
Michelli Nicolich. O Estado e o sistema de Justiça e Segurança por muito tempo
ignoraram ou negligenciaram a proteção de mulheres. Casos como esse não são
mais aceitáveis.
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Carolina Ricardo e Natália Pollachi são,
respectivamente, diretora-executiva e gerente do Instituto Sou da Paz.
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