Por que o dólar segue dominante no sistema
monetário internacional
Iniciativas como BRICS, SML e INSTEX ampliam
alternativas de pagamento, mas não substituem o arranjo consolidado desde 1971
Marcelo Fernandes/Portal Grabois www.grabois.org.br
Está ocorrendo uma ruptura do sistema
monetário internacional?
Desde a imposição das sanções econômicas contra
a Rússia em razão desse país ter invadido a Ucrânia em fevereiro de 2022, uma discussão
mais ampla sobre “desdolarizaç&atild e;o” se tornou recorrente. Vários
analistas acreditam que o papel do dólar americano como moeda-chave do sistema
monetário internacional (SMI) estaria em risco ou mesmo que ele já não cumpre
essa função. André Lara, por exemplo, não tem mais dúvida de que o domínio do
dólar está ameaçado e que “o processo de perda de relevância do dólar no
cenário comercial e financeiro mundial já está relativamente avançado”i. Normalmente,
este é um processo descrito como fim da hegemonia do dólar, que seria
suplantado ou passaria a dividir com outras moedas o palco principal.
Assim, o termo desdolarização tem sido utilizado
para caracterizar uma ruptura no atual padrão monetário baseado no dólar.
Porém, como veremos neste artigo, existem alguns exageros e imprecisões neste
debate.
Dollar Weaponization
Desde os anos 1980, o déficit em transações
correntes do balanço de pagamentos e a dívida pública dos Estados Unidos são
comumente descritos como fatores responsáveis por uma suposta fragilidade do
dólar que inevitavelmente levaria ao seu declínio como moeda padrão
do sistema monetário internacional (SMI)ii. Atualmente,
entretanto, o argumento principal é de que o governo tem usado o dólar como
arma contra seus adversários, como a revista britânica “The Economist”
denominou de “ultimate weapon of mass disruption”, algo que ficou mais
perceptível após as sanções econômicas contra a Rússia. Isto é, os Estados
Unidos vêm utilizando sua posição excl usiva e assimétrica no SMI, aplicando
restrições ao uso do dólar e aos sistemas de pagamentos como forma de punição.
Antes das sanções à Rússia, já se discutia o uso do
dólar como instrumento geopolítico. A ação mais radical até então tinha sido
contra o Irã, grande exportador de petróleo e país com considerável importância
regional. Em março de 2012, os bancos irani anos foram excluídos do sistema de
mensagens financeiras internacional, o Worldwide Interbank Financial
Telecommunication (Swift), dificultando muito a venda do seu petróleo
no mercado internacional. Em 2016, após um acordo sobre seu programa nuclear, o
país recuperou seu acesso para, em novembro de 2018, ser novamente cortado da
rede de mensagens. Ainda hoje, o Irã sofre restrições relacionadas ao Swift.
Todavia, o caso mais emblemático, sem dúvidas, é o
da Rússia. Em março de 2022, os bancos russos foram excluídos da rede Swift e o
país teve quase metade de suas reservas congeladas. Com isso, aproximadamente
US$ 300 bilhões dos seus US$ 630 bilhões em reservas não puderam mais ser
acessados pelo ba nco central russo, sendo a maior parte de ativos denominados
em euros – medida tão excepcional, que teria surpreendido as autoridades
russas, segundo o chanceler da Rússia, Serguei Lavroviii. Uma ação
sem precedentes, levando-se em conta que a Rússia é a 11ª economia do mundo.
Assim, a redução do uso do dólar pela Rússia não
ocorre exatamente por uma escolha das suas autoridades, mas de uma necessidade
imposta pelo Ocidente por meio destas sanções econômicas, iniciadas desde a
anexação da Crimeia em março de 2014. As sanções econômicas intensific adas em
2022, e sem prazo de duração definido expuseram mais uma vez o uso do dólar
como instrumento para promoção dos interesses geopolíticos norte-americanos,
ampliando as reivindicações por uma reforma do SMI.
Funcionamento do SMI
O atual padrão monetário internacional, o padrão
dólar-flexível, não é fruto de uma reforma planejada ou de qualquer acordo
internacional entre as grandes potências. Não existe uma lei internacional que
discipline o uso das moedas entre os países. O padrão dólar-flexível nasce de
uma decisão unilateral por parte de Washington que, em 1971, pôs fim ao sistema
anterior, o padrão ouro-dólar, em que o dólar já era dominante. O dólar tem o
predomínio na liquidação das transações comerciais e financeiras, mas outras
moedas também cumprem esta função em escala mais restrita, como o iene japonês
no espaço asiático. Logo, nenhum país está obrigado a usar o dólar em suas
relações econômicas internacionais, ainda que isso possa acarretar custos
econômicos.
Assim, é preciso destacar, pois nem sempre está
claro no debate, que o SMI convive com algumas moedas soberanas aceitas fora
das fronteiras dos seus países emissores e utilizadas como meio de pagamento e
reservas dos bancos centrais. Este é o caso do euro, do iene, da libra
esterlina e, mais recentemente, do renminbi (yuan). Estas sã o as moedas mais
importantes e ainda possuem a característica de constituírem a cesta de moedas
dos direitos especiais de saque (SDR) do Fundo Monetário Internacional (FMI).
Ainda há outras moedas, como o dólar canadense, dólar australiano e o franco
suíço, que compõem as reservas de alguns bancos centrais, embora em uma parcela
significativamente reduzida.
Portanto, há um conjunto de moedas que podemos
classificar de moedas internacionalizadas; porém, uma única desempenha a função
de moeda-chave do sistema, definindo o padrão monetário. Neste caso, temos
evidentemente o dólar americano como essa moeda.< /span>
Ampliação do SMI por meio de novos
acordos monetários
A tese de uma ruptura no SMI não é original:
algumas moedas já foram apontadas como candidatas a substituir o dólar, como o
marco alemão e o iene japonês nos anos 1980-1990, o euro nos anos 2000, e agora
a escolhida parece ser o renminbi da China ou até mesmo o ouro em um curioso retorno
ao padrão-ouro do sé ;culo XIX. Outra possibilidade debatida seria a criação de
um SMI multimonetário com o dólar dividindo sua liderança com outras moedas.
Uma das evidências apontadas de que o mundo estaria
caminhando para a ruptura do SMI seria a emergência de acordos sobre moedas
locais. Vale lembrar que tais acordos também não são novidade. Diversos acordos
comerciais com a utilização de moedas locais já foram e continuam sendo
realizados. Alguns com algum sucesso e outros que, na prática, mal saíram do
papel. Atualmente temos a iniciativa dos países que formam os
BRICS (Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul) sobre o
uso de moedas locais, tendo a Rússia a principal interessada por conta das
sanções. No âmbito do bloco, também se discute a criação de uma nova moeda – R5
é o nome sugerido para a moeda – também no intuito de facilitar o comércio sem
o uso direto do dólar.
Na esfera da América do Sul, há o Sistema de
Pagamentos em Moeda Local (SML) iniciado em 2008, entre Brasil e Argentina, que
permite que o comércio entre os dois países seja liquidado em suas respectivas
moedas. Mais tarde o SML passou a contar com a participação de Paraguai e
Uruguai. Conforme o Grupo de Monitoramento Macroeconômico do Mercosul (GMM),
apenas 5% do volume de exportações intra-bloco passavam pelo SML e somente o
Brasil responderia por 50%iv. Em 2009, a
Aliança Bolivariana para os Povos da Nossa América (ALBA) criou o sucre, moeda
cujo objetivo declarado era se livrar da “ditadura do dólar”, promovendo a
integração das economias do bloco. Inicialmente, o sucre parecia ter um caminho
promissor; hoje, na prática, está extinto.
O descontentamento com a forma que os Estados
Unidos usam seu privilégio exorbitante sobre o SMI atinge inclusive seus
aliados mais próximos. Em janeiro de 2019, para contornar as sanções de
Washington ao Irã, Reino Unido, França e Alemanha anunciaram a instituição
do Instrument in Support of Trade Exchanges (INSTEX),
funcionando como uma câmara de compensação para comercializar com o Irã sem
utilizar o dólar. Posteriormente, outros sete países europeus se juntaram à
iniciativa (Bélgica, Finlândia, Dinamarca, Holanda, Noruega, Espanha e Suécia).
Entretanto, o INSTEX foi extinto em março de 2023 e, durante o período em que
esteve ativo, foi utilizado somente uma vez, em março de 2020, para exportação
de remédios da Europa para o Irã. Tudo isso revela a dificuldade de se criar
mecanismos de compensação mais amplos e com menos custos.
Rumo a um novo padrão monetário?
Acordos monetários são complexos e, uma vez
firmados entre países, as empresas privadas somente farão uso do acordo se
perceberem vantagens econômicas. Independente disso, tais acordos podem reduzir
o uso do dólar como meio de pagamento – e aqui o termo desdolarização faria
sentido, mas não significam por si só uma mudança do padrão monetário. Há de
fato uma ampliação das iniciativas de acordos monetários, porém todas elas
ocorrem dentro do padrão monetário vigente, isto é, dentro do padrão
dólar-flexível inaugurado em 1971. Para os Estados Unidos, não importa se o
comércio entre Rússia e China é negociado em renminbi, se a Arábia Saudita irá
vender petróleo em euro para a União Europeia ou se o Mercosul está usando o
SML. O que importa é se suas importações continuam sendo liquidadas em dólar. É
esta a vantagem extraordinária da qual os Estados Unidos jamais abrirão mão: o
de ser o único país sem qualquer restrição em seu balanço de pagamentos.
Ademais, o dólar, sob qualquer indicador objetivo
que se utilize, confirma seu amplo domínio no sistema monetário e financeiro
internacional. Um indicador que normalmente tem sido ressaltado de forma
exagerada são as reservas denominadas em dólar dos bancos centrais. Em 1995, no
auge do imperialismo norte-americano, a parcela de d&oa cute;lares alocados
nas reservas internacionais dos países era de 58,6%; no segundo quadrimestre de
2025 estava em 56,3%. Na verdade, trata-se de uma variação modesta que em parte
está ligada à desvalorização do dólar ocorrida neste ano.
Outro indicador interessante é a taxa de turnover cambial,
que o Banco Internacional de Compensações (BIS) disponibiliza a cada três anos.
O turnover representa a atividade
nos mercados cambiais, sendo um bom indicador do uso global de uma moeda. Um
mercado que, atualmente, movimenta diariamente US$ 9,6 trilhões, o que
significa um aumento de 28%, comparado aos US$ 7,5 trilhões do último
levantamento. Vale observar que, como sempre há duas moedas em cada transação,
a soma das percentagens totaliza 200%.
Como podemos observar no quadro abaixo, o dólar é
amplamente dominante, e ainda teve um ligeiro crescimento comparado ao último
triênio. Vale destacar o renminbi que, em 2007, praticamente não participava
dos mercados cambiais e agora tem um turnover de 8,8%.
Taxa de Turnover
(principais moedas)
|
Moedas |
2007 |
2010 |
2013 |
2016 |
2019 |
2022 |
2025 |
|
USD |
86,0% |
84,9% |
87% |
87,6% |
88,3% |
88,5% |
89,2% |
|
EUR |
37,0% |
39% |
33,4% |
31,4% |
32,3% |
30,5% |
28,9% |
|
JPY |
17,0% |
19% |
23% |
21,6% |
16,8% |
16,7% |
16,8% |
|
GBP |
15,0% |
12,9% |
11,8% |
12,8% |
12,8% |
12,9% |
10,2% |
|
CNY |
0,0% |
0,9% |
2,2% |
4% |
4,3% |
7,0% |
8,5% |
Fonte: Banco
Internacional de Compensações (BIS)
Na literatura, é bastante mencionado que a moeda
que cumpre o papel de moeda chave do SMI precisa ser tratada como um bem
público global pelo país emissor, não como uma ferramenta de promoção de seus
interesses nacionais.
A questão aqui é que os Estados Unidos usam
reiteradamente o dólar segundo seus próprios interesses. Apenas para citar um
exemplo, a política do quantitative easing conduzida pelo Fed
(banco central dos Estados Unidos) e iniciada em novembro de 2008, um
experimento que expandiu a base monetária americana em torno de 700%, obrigando
vários governos no mundo a adotarem medidas para tentar controlar a excessiva
entrada de dólares e a valorização das suas moedas. Nesse contexto, o então
ministro da Fazenda Guido Mantega denunciou que uma “guerra cambial” estava em
curso.v O uso do
dólar para atender a certos interesses nacionais não deveria surpreender,
afinal, com um instrumento tão poderoso, por que os Estados Unidos não
utilizariam?
O descontentamento e a demanda por uma reforma no SMI são evidentes. A questão que se coloca é como fazê-la.
Marcelo
Fernandes é doutor em Economia pela Universidade
Federal Fluminense (UFF/RJ). Professor Associado IV do Departamento de Economia
da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro ( UFRRJ), onde também atua no
Programa de Pós-Graduação em Ciência, Tecnologia e Inovação em Agropecuária
(PPGCTIA). É professor do Programa de Pós-Graduação em Economia Política
Internacional (PEPI) da UFRJ. Atualmente, está cedido ao Instituto Pereira
Passos, na Coordenadoria de Projetos Especiais, e realiza estágio pós-doutoral
na UFRJ com pesquisa sobre a internacionalização do renminbi. É membro do Grupo de Pesquisa Desenvolvimento
Nacional e Socialismo (GP1) da Fundação Maurício Grabois.
Notas
i RESENDE, André Lara.
“A dominância do dólar, os bancos centrais e o mundo pós-Bretton Wood”.
CEBRI-Journal, ano 4, no. 15, Jul-Set, 2025.
ii Atualmente tem
havido uma ênfase maior sobre a dívida pública americana em relação ao déficit
em transações correntes em razão da política fiscal do atual governo Trump, o
“Big, Beautiful Bill”, projeto de lei tributária de gastos que dever&aacut
e; elevar ainda mais a relação dívida/PIB dos Estados Unidos.
iii JACK, Victor. “Sergey Lavrov admits Russia was
surprised by scal e of Western sanctions”, Politico, March 23,
2022.
iv “GMM avança na criação de propostas
para melhorar o Sistema de Pagamentos de Moedas Locais do Mercosul”,
31 de outubro, 2023.
v FERNANDES, Marcelo
Pereira. “Notas sobre a conturbada economia
norte-americana”. Fundação Maurício Grabois, 2014.
[Qual a sua opinião?]
Leia também: O crepúsculo do império norte-americano https://lucianosiqueira.blogspot.com/2025/11/eua-em-decadencia.html

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