24 março 2015

A vida do jeito que é

O bueiro da fábrica

Marco Albertim *

A única rua onde se vê o muro lateral da fábrica chama-se rua do Curtume. Lá, há quarenta anos, cabras e bois eram abatidos. O tempo não fez justiça à principal atividade do lugar, batizando a rua de rua do matadouro ou do abatedouro. Os anos homenagearam os couros e peles dos animais, expostos em varais paralelos, dias seguidos, até que ficassem devidamente curtidos.
O fedor da putrefação da gordura misturava-se ao dos excrementos dos bichos, na superfície de areia fina; embolava-se no ar para ser soprado acima dos telhados das poucas casas. As casas, cobertas com telhas soltas, não tinham forro; daí resultava que o vapor da decomposição infiltrava-se nas moradias, fazendo pouco do cheiro escasso do feijão em panelas de barro; ao meio-dia e começo das tardes, com o sol a pino.
O abatedouro não existe mais. A rua com apenas um quarteirão foi ocupada, de um lado e de outro, por moradias conjugadas. Uma porta de acesso e uma janela na frente. Durante o dia, ninguém põe um assento na calçada nem se debruça na janela para espiar quem poreja do lado de fora. À noite, as calçadas são tomadas por cadeiras com assentos de vime e encostos de madeira. Transitar à noite é comum. Ninguém mais repara em quem anda rumo aos paredões da fábrica, para, na extremidade norte, descer ao Baldo do Rio. Mesmo no período da moagem, quando a usina de açúcar despeja a calda da cana no rio, incensando as duas margens com o bodum de madeira apodrecida. Nos dois lados da compridez do rio, há casas de taipa abrigando pescadores. Com a calda, o rio tinge-se de um pretume doentio; os peixes morrem; até os lambaris, de couro e barbatanas resistentes, boiam na tona. As canoas, atadas aos moirões, têm a proa inerte, com brechas nas junturas de madeirame; são como bocas com poucos dentes ou desdentadas.
Há uma única atividade que mantém ocupada uma dúzia de operários, oleiros na fabricação de tijolos e telhas. O massapê na Zona da Mata é farto, ainda que ameaçado pelo plantio expansivo da cana. Não há muros impedindo o acesso à olaria, nem vigia com capotes escuros para confundir-se com a noite. Assim, depois de descer o beco na extremidade do paredão da fábrica, os operários se reuniram; uns em pé, outros sentados em pilhas de tijolos já cozinhados. Nenhum usando macacão, mas todos, uns mais outros menos, com fiapos de algodão nos cabelos, nas sobrancelhas, nas têmporas vincadas.
- Se vai haver demissão, não há certeza. O gerente diz que se houver demissão, a fábrica não tem dinheiro para pagar a indenização.
- Vão pagar com as redes.
- Nas casas dos operários, rede de dormir é sinônimo de pobreza. Pra que vamos querer mais redes?
- E se fizermos uma greve?
- Se fizermos uma greve, a fábrica fecha de vez. Não seremos indenizados nem com redes!
- Vamos ocupar a fábrica e exigir a desapropriação para que seja administrada por nós. Faremos uma cooperativa.
- A polícia invade a fábrica. Como vamos resistir?
Não houve resposta. Ninguém se atreveu a antecipar o pior. Também não houve tempo. O espectro de um destacamento policial entrando no corredor da fábrica, cercando o galpão com operários ao lado das máquinas fiandeiras, deu lugar a outro tão vivo quanto terrível. Uma vintena de homens e mulheres apareceram na olaria. Os homens tinham as calças amarradas com cordões na cintura, uns descalços, outros com os pés no chão duro do massapê seco. As mulheres com vestidos de uma peça só, dos pés à cabeça; os cabelos amarrados atrás, com tufos ralos, soltos, acima da testa. Junto a cada uma, moleques com os cambitos finos, camisas rotas e sem botões para atar os lados da frente. Mesmo sendo noite, não foi difícil para os operários distinguir em cada rosto dos recém-chegados, na comissura das bocas, na respiração viciosa da calda do rio, os pescadores.
Os dois grupos olharam-se sem susto, com interrogações.
- A fábrica vai fechar - disse o que viera na frente, após certificar-se de que todos haviam se compactado. - Não há peixe para ser pescado. E quando a fábrica fechar, vamos vender o peixe a quem?
Às dez da noite, o bueiro da fábrica soltou o apito bufante. Da boca redonda da chaminé, saíram golfadas de fumaça fuliginosa. O cheiro juntou-se à podridão azeda vinda do rio. Homens e mulheres vincaram as testas, entreolhando-se. O ruído na chaminé espalhara a suspeita de que, na manhã seguinte, as fiandeiras ficariam mudas.

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