16 agosto 2015

Mutações em curso

Gesta-se um novo modelo

Dilermando Toni

O conjunto das forças conservadoras, oposicionistas, tem propalado aos quatros ventos a gravidade da crise econômica brasileira. Pintam uma situação absolutamente caótica para descrever o quadro econômico do Brasil. Falam de uma inflação descontrolada, de uma recessão profunda e prolongada, da desvalorização do Real frente ao Dólar, da paralisia geral que reina no país, do desemprego na tentativa de mostrar que um governo que promoveu tudo isto já não reúne mais as condições para continuar governando. Em síntese, adotam o discurso do “quanto pior, melhor” para pavimentar o caminho do golpe. Aquela velha tática de falar um pouco de verdade para passar uma grande mentira pelo meio.
Porém, a crise brasileira é diferente da crise que assolou o mundo capitalista desenvolvido a partir de 2007/08. Lá ela iniciou-se e atingiu frontalmente o sistema financeiro. Tanto é que um dos marcos da crise foi a quebra do poderoso banco de investimentos Lehman Brothers em setembro de 2008. A partir daí se espalhou por toda a economia prejudicando enormemente o setor produtivo. Dos EUA no início para a Europa e Japão a seguir, transformando-se em crise sistêmica. Tão profunda que até hoje não foi superada apesar dos trilhões de dólares que os governos destes países têm injetado no sistema financeiro para estimular suas economias nacionais.
Aqui vivemos uma crise centrada na indústria e em parte no comércio. Mas o sistema financeiro não está absolutamente em crise. Isto é o que indicam os resultados dos seis primeiros meses do ano, quando a presidenta Dilma redirecionou a política econômica para o pesado ajuste fiscal, para a elevação da taxa básica de juros, para as restrições ao crédito e aos empréstimos do BNDES. Também o setor agropecuário, apesar das dificuldades que enfrenta, deve conquistar uma safra recorde este ano, de mais de 200 milhões de toneladas de grãos.
Cá entre nós o que vai sendo construído é outro modelo de acumulação capitalistaque precisa da crise para ser implantado. O âmago deste é um patamar superior de dominância do sistema financeiro sobre toda a economia. Os rentistas querem abocanhar parcela ainda maior da mais-valia produzida na sociedade pelos trabalhadores. Aliás, é bom relembrar aqui o disse Marx a respeito desses arranjos na economia capitalista: “ … periodicamente o conflito entre os agentes antagônicos se desafoga em crises. As crises são sempre apenas soluções momentâneas violentas que restabelecem momentaneamente o equilíbrio perturbado”[i]
Procuro me explicar melhor. O modelo que o ex-presidente Lula e a atual presidenta Dilma adotaram durante 12 anos foi um modelo híbrido, ou seja, um pouco desenvolvimentista e um pouco liberal/conservador, ora mais para um lado, ora mais para o outro. Ainda assim, este hibridismo possibilitou o crescimento do produto, melhorar a distribuição de renda e o nível do emprego. Alguns mais empolgados chegaram a caracterizá-lo como um tipo de “social-desenvolvimentismo”, particularmente quando a presidenta decidiu baixar a taxa de juros para níveis “civilizados”, durante 2012, início de 2013 e quando se conseguiu reduzir a taxa de desemprego a patamares mínimos na história do Brasil moderno.
Mas, por não ter feito uma ruptura mais radical – subjacente ao tipo de  processo político em curso – este modelo se esgotou. O esquema de financiamento do Estado continuou a ter como mola mestra o endividamento público ao tempo em que se pôs em prática políticas voltadas à melhoria do nível de vida dos trabalhadores e ao aumento da produção no setor produtivo. Isto provocou algum desequilíbrio fiscal e alguma inflação. Foi o suficiente para que os senhores das finanças bradassem:
– alto lá! a inflação voltou e desta forma está ficando comprometida a capacidade do governo de honrar os compromissos da dívida que tem para conosco. Basta! vamos parar com esta experiência de desenvolvimentismo que está nos levando ao precipício. É absolutamente necessário que o governo passe a gastar menos, a arrecadar mais e que os juros voltem a subir, para combater a inflação que a todos prejudica …
E então, passados seis meses das eleições estes brados vão se transformando em realidade, colocando povo, Estado e setor produtivo ainda mais dependentes, mais submetidos aos donos do capital portador de juros.  Alguns fatores explicam este recuo. Entre outros: 1) a correlação de forças bastante desfavorável do pós-eleitoral, 2) o elevado nível de endividamento público de curto prazo, 3) a persistência da crise internacional do capitalismo, 4) o uníssono apoio midiático, e, por último e mais importante, 5) a crise industrial. Tudo isto dá uma tremenda força à oligarquia financeira.
Assim, é que vão se desenrolando os fatos:
1 — Desde o início de 2015, a indústria já acumula queda de 6,3%, sendo 5% se considerarmos o acumulado de doze meses. O maior destaque vai para a retração do setor de bens de capital, que já recuou 17,2% na comparação com junho de 2014, seguida pelo setor de bens de consumo durável, com queda de 2,4%.
O consumo de energia nas 24 cidades da Região Metropolitana de São Paulo, atendidas pela AES Eletropaulo, recuou 3,9% nos seis primeiros meses do ano comparado com o mesmo período do ano passado, sendo que na indústria o recuo foi de 7,8%. O preço da tarifa elétrica, nesse mesmo período, subiu em média 75% para o cliente residencial. Graças principalmente à tarifa mais cara, a Eletropaulo acumulou lucro líquido de R$ 48,5 milhões no segundo trimestre deste ano, enquanto no mesmo período do ano passado o prejuízo havia sido de R$ 354,4 milhões.
2 – Na contramão deste movimento, em doze meses terminados em 31/7 último, segundo o Banco Central, os juros pagos pelo governo ao sistema financeiro totalizaram R$ 417 bilhões, que correspondem a 7,32% do PIB. Isto explica em parte porque o lucro das instituições bancárias que operam no Brasil tem mostrado elevação no segundo trimestre do ano, com o Itaú tendo divulgado crescimento de 22,1% em seu lucro (totalizando R$ 5,984 bilhões), enquanto o Bradesco apresentou alta de 18,4% (totalizando R$ 4,5 bilhões). Mesmo o Santander apresentou lucro expressivo, registrando lucro contábil de R$ 3,88 bilhões (R$ 1,67 bilhões se retirarmos os efeitos da reversão de provisões fiscais).[ii]
Assim, inaugurou-se um período de ainda maior transferência de renda para o setor bancário que já era tradicionalmente o mais rentável comparativamente aos outros.[iii]
3 – Parte integrante deste novo modelo é a volta a elevados níveis de concentração da riqueza, referentes aos dados da renda do trabalho e do capital, divulgados pela Receita Federal, muito mais precisos que os dados da PNAD que só se referem às rendas do trabalho. Só para se ter uma ideia 71440 pessoas ou 0,3% dos quase 26.500.000 declarantes, com renda mensal acima de 160 salários-mínimos, obtiveram R$ 297,9 bilhões de renda anual, nada menos que 14% da renda total dos declarantes. São R$ 4,17 milhões anuais em média para cada um. Esses mesmos privilegiados detinham em 2013 um patrimônio avaliado em R$ 1,2 trilhão, quase 23% do total. Por sinal, são as pessoas que menos pagam Imposto de Renda, somente 6,51% de sua renda total. Com a política adotada a partir do início de 2015 esta concentração de riqueza tende a se aprofundar.[iv]
Ao final poderiam me perguntar, mas então tudo está perdido? Penso que não. Este modelo ainda não está consolidado, está em disputa. Superada a crise política, o que parece ser tendencialmente previsível, a presidenta Dilma terá condições de orientar a economia brasileira para a rota da retomada do crescimento e do bem-estar do povo brasileiro.
[i] Marx – O Capital, livro III, tomo I.
[ii] Nota da Fundação Perseu Abramo.
[iii] Ver o artigo de Juvandia Moreira, Por que os bancos lucram mais do que outros setores?, de setembro de 2014.
[iv] Dados detalhados no site da Receita Federal.

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