A consciência do mal
José Eduardo
Agualusa, em O Globo
Certas manhãs, ao ler os jornais, aflige-me a dura
evidência de que a Humanidade é má, irremediavelmente má, e que o mundo está à
beira da grande catástrofe. No dia seguinte, porém, já me parece o contrário: o
mundo talvez esteja, afinal, recomeçando. Talvez estejamos simplesmente na
confusa fronteira de um tempo novo, aturdidos pela luz futura, e com alguma
dificuldade para nos libertarmos da brutalidade com que, durante milênios,
lidamos uns com os outros e com a natureza à nossa volta.
Por um lado, são as imagens da jornalista húngara a
chutar crianças e a passar uma rasteira a um refugiado que carrega o filho nos
braços. Por outro, é a notícia de que vem aí uma vacina contra a malária,
doença que continua a matar, todos os anos, milhões de pessoas. A malária tem
sido um dos principais obstáculos ao desenvolvimento de muitos países
tropicais, sobretudo no continente africano. Se conseguirmos prevenir a
malária, alguns desses países poderão recuperar em poucos anos um atraso de
décadas.
Por um lado, fico a saber que as flores estão a
perder o perfume, devido ao efeito de estufa e à poluição atmosférica, e que
essa desgraça dificultará ainda mais a já difícil existência das abelhas, de
cujo trabalho depende a vida das plantas e a nossa. Por outro, leio que o ritmo
de desmatamento no mundo se reduziu para metade no último quarto de século.
Ainda não é o fim da tragédia, mas parece ser o começo do fim.
Num dia, dizem-me que o El Niño de 2015 vai ter uma
intensidade nunca antes vista, e que os próximos meses poderão ser os mais
quentes desde que há registros (vale lembrar, a propósito, que a concentração
de dióxido de carbono na atmosfera atingiu um nível recorde em março deste
ano). No dia seguinte, leio que cientistas russos e espanhóis estão em vias de
conseguir deter ou inverter o processo de envelhecimento; que outros cientistas
tencionam clonar um mamute e que ainda outros vão realizar o primeiro
transplante de cabeça num homem que sofre de uma rara doença de atrofiamento
muscular.
Talvez eu só devesse ler os jornais dia sim, dia
não — nos dias sim. “Nada denuncia tanto o homem vulgar quanto a recusa em ser
desiludido”, escreveu Emil Cioran, e eu leio isto e sinto-me o mais vulgar dos
homens vulgares. Dou-me conta, contudo, que a vulgaridade do otimismo, que Cioran
pretende ironizar, é em si mesma inesperadamente otimista. Sobretudo, tendo em
atenção um outro aforismo do próprio Cioran, filósofo romeno que namorou com o
nazismo e que era um sujeito profundamente cínico e melancólico: “No pessimista
combinam-se uma bondade ineficaz e uma malvadez insatisfeita.”
Sendo assim, prefiro permanecer otimista e
acreditar que a atitude da jornalista húngara tem mais a ver com o passado do
que com o futuro da Humanidade. Ela, os fascistas islâmicos, e outros da mesma
laia, são uma espécie de arcaísmos morais — estão no mundo para lembrar a todos
que houve um tempo em que a maioria das pessoas era bruta, estúpida e má; em
que a escravatura era legal e institucionalizada; em que a tortura sistemática
fazia parte dos sistemas de justiça; em que queimar pessoas vivas em público
era considerado um espetáculo edificante, aconselhado a crianças, e tantas
outras depravações e imensas maldades.
Não existe mais crueldade, mais maldade, mais
horror, no nosso tempo do que há 50 anos. O que há, é uma mais ampla exposição
do horror. Imaginemos aquela jornalista a chutar crianças, não refugiados
sírios, na Hungria, em 2015, mas meninos judeus, na Hungria, em 1935. Talvez
alguns colegas dela tivessem dado conta do sucedido. Mais ninguém. Não teria
explodido um largo movimento global de indignação. Um ou outro colega poderia
tê-la criticado. Porém, face ao grande silêncio geral, também eles se calariam.
A mulher voltaria a chutar meninos judeus. As pessoas à volta dela começariam a
achar uma atitude normal, isso de chutar meninos judeus, e assim, pouco a
pouco, o mal se instalaria, como de fato se instalou, cotidiano e vulgar.
Escrevi, há alguns anos, que a grande diferença
entre um país do terceiro mundo, como Angola, e um país desenvolvido, como a
Noruega, é que nos primeiros o horror está à superfície e a beleza se encontra
oculta, ao passo que nos segundos a beleza está à superfície e o horror jaz
escondido. A novidade, a feliz novidade, é que nos nossos dias começa a ser
cada vez mais difícil manter o horror oculto, onde quer que seja. Não há mais
maldade hoje, não. Não há mais criminosos. A corrupção não piorou. O que
aumentou foi a denúncia. O que aumentou foi a consciência do mal — e isso é
bom.
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