O paradoxo e a insensatez
Por José Luís Fiori, no Valor Econômico
"Uma vez me perguntaram se o
Estado brasileiro é muito grande. Respondi assim: "Eu vou lhe dar o
telefone da minha empregada, porque você está perguntando isto para mim, um
cara que fez pósdoutorado, trabalha num lugar com ar-condicionado, com vista
para o Cristo Redentor. Eu não dependo em nada do Estado, com exceção de
segurança. Nesse condomínio social, eu moro na cobertura. Você tem que
perguntar a quem precisa do Estado". (Luiz G. Schymura, "Não foi por decisão de Dilma que o gasto
cresceu", Valor, 07/08/2015 )
Duas coisas ficaram mais claras nas últimas semanas, com relação à tal
da "crise brasileira". De um lado, o despudor golpista, e de outro, a
natureza ultraliberal do seu projeto para o Brasil. Do ponto de vista político,
ficou claro que dá absolutamente no mesmo o motivo dos que propõem um impeachment,
o fundamental é sua decisão prévia de derrubar uma presidente da República
eleita por 54,5 milhões de brasileiros, há menos de um ano, o que caracteriza
um projeto claramente golpista e antidemocrático, e o que pior, conduzido por
lideranças medíocres e de discutível estatura moral.
Talvez, por isto mesmo, nas últimas semanas, a imprensa escalou um grupo
expressivo de economistas liberais para formular as ideias e projetos do que
seria o governo nascido do golpe. Sem nenhuma surpresa: quase todos repetem as mesmas
fórmulas, com distintas linguagens. Todos consideram que é preciso primeiro
resolver a "crise política", para depois poder resolver a "crise
econômica"; e uma vez "resolvida" a crise política, todos
propõem a mesma coisa, em síntese: "menos Estado e menos
política".
Não interessa muito o detalhamento aqui das suas sugestões técnicas. O
que importa é que suas premissas e conclusões são as mesmas que a utopia
liberal repete desde o século XVIII, sem jamais alcançá-las ou comprová-las,
como é o caso de sua crença econômica no "individualismo eficiente",
na superioridade dos "mercados desregulados", na existência de
mercados "competitivos globais", e na sua fé cega na necessidade e
possibilidade de despolitizar e reduzir ao mínimo a intervenção do Estado na
vida econômica.
É muito difícil para estes ideólogos que sonham com o "limbo"
entender que não existe vida econômica sem política e sem Estado. É muito
difícil para eles compreender ou aceitar que as duas "crises
brasileiras" são duas faces de um conjunto de conflitos e disputas
econômicas cruzadas cuja solução tem que passar inevitavelmente pela política e
pelo Estado.
Não se trata de uma disputa que possa ser resolvida através de uma
fórmula técnica de validez universal. Por isto, é uma falácia dizer que existe
uma luta e uma incompatibilidade entre a "aritmética econômica" e o
"voluntarismo político". Existem várias "aritméticas
econômicas" para explicar um mesmo déficit fiscal, por exemplo, todas só
parcialmente verdadeiras. Parece muito difícil para os economistas em geral, e
em particular para os economistas liberais, aceitarem que a economia envolve relações
sociais de poder, que a economia é também uma estratégia de luta pelo
poder do Estado, que pode estar mais voltado para o "pessoal da
cobertura", mas também pode ser inclinado na direção dos menos favorecidos
pelas alturas.
Agora bem, na conjuntura atual, como entender o encontro e a colaboração
destes economistas liberais com os políticos golpistas?
O francês Pierre Rosanvallon dá uma pista, ao fazer uma anátomo-patologia
lógica do liberalismo da "escola fisiocrática" francesa, liderada por
François Quesnay. Ela parte da proposta fisiocrático-liberal de redução
radical da politica à economia e da transformação de todos os governos em
máquinas puramente administrativas e despolitizadas, fiéis à ordem natural dos
mercados. E mostra como e por que este projeto de despolitização radical da
economia e do Estado leva à necessidade implacável de um "tirano" ou
"déspota esclarecido" que entenda a natureza nefasta da política e do
Estado, se mantenha "neutro", e promova a supressão despótica da
política, criando as condições indispensáveis para a realização da "grande
utopia liberal", dos mercados livres e desregulados.
Foi o que Rosanvallon chamou de "paradoxo fisiocrata", ou
seja: a defesa da necessidade de um "tirano liberal", que
"adormecesse" as paixões e os interesses políticos, e se possível, os
eliminasse.
No século XX, a experiência mais conhecida deste projeto ultraliberal
foi a da ditadura do Sr. Augusto Pinochet, no Chile, que foi chamada pelo
economista americano Paul Samuelson de "fascismo de mercado".
Pinochet foi por excelência a figura do "tirano" sonhado pelos
fisiocratas: primitivo, quase troglodita, dedicou-se quase inteiramente à
eliminação dos seus adversários e de toda a atividade politica dissidente, e
entregou o governo de fato a um grupo de economistas ultraliberais que puderam
fazer o que quiseram durante quase duas décadas.
No Brasil não faltam neste momento os candidatos com as mesmas
características e os economistas sempre rápidos em propor e dispostos a levar
até as últimas consequências o seu projeto de "redução radical do
Estado", e se for possível, de toda atividade política capaz de perturbar
a tranquilidade de sua "aritmética econômica".
Neste sentido, não está errado dizer que os dois lados deste mesmo
projeto são cúmplices e compartem a mesma e gigantesca insensatez, ao supor que
seu projeto golpista e ultraliberal não encontrará resistência, e no limite,
não provocará uma rebelião ou enfrentamento civil, de grandes proporções, como
nunca houve antes no Brasil.
Porque não é necessário dizer que tanto os líderes golpistas quanto seus
economistas de plantão olham para o mundo como se ele fosse uma "enorme
cobertura", segundo a tipologia sugerida na epígrafe, pelo Sr. Luiz
Schymura. Um raro economista liberal, em entender a natureza contraditória dos
mercados, e natureza democrática do atual déficit público brasileiro.
1) P. Rosanvallon, Le liberalisme
économique. Histoire de l'idée de marché, Editions Seuil, Paris, 1988
José Luís Fiori, professor titular de economia política internacional da
UFRJ, é autor do livro "História, estratégia e desenvolvimento"
(2014) da Editora Boitempo, e coordenador do grupo de pesquisa do
CNPQ/UFRJ.
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