26 setembro 2015

Quem manda na zona do euro

O direito e a mentira na crise europeia

Os líderes da União Europeia tiveram que violar a lei para salvar o euro. Ésquilo já havia dito que a primeira vítima de toda guerra é a verdade.
Alejandro Nadal - La Jornada, México, na Carta Maior
Winston Churchill já dizia que em tempos de guerra a verdade é tão valiosa que deve ser protegida por um cinturão de mentiras. E na crise econômica também encontramos um fértil ecossistema onde proliferam a mentira e a manipulação, para proteger a verdade, ou o que resta dela.
Esta semana, depois que o Syriza voltou a triunfar nas eleições gregas, a restruturação da dívida volta a ser um tema de grande relevância. Tsipras e seu partido se apresentam para o eleitorado e a opinião pública como os únicos capacitados para alcançar o objetivo que escapou das suas mãos no primeiro mandato. Porém, nestas novas tentativas, enfrentarão velhas mentiras.
Desde que a crise atingiu a Europa, a cartilha reza que é preciso aplicar as regras e os tratados fundamentais da união monetária. Essa retórica se refere, em primeira instância, à necessidade de pagar as dívidas adquiridas, e em segundo lugar, à impossibilidade de resgatar uma economia em perigo de se tornar insolvente.
Qual é o fundamento legal da segunda “regra”? Normalmente, o argumento se baseia no artigo 125, parágrafo primeiro, do Tratado da União Europeia, em sua versão consolidada. Esse dispositivo diz que nem a UE nem os estados membros poderão assumir ou responder aos compromissos dos governos centrais, autoridades regionais ou locais ou outras autoridades públicas, ou empresas públicas dos estados membros, sem que isso interfira nas garantias financeiras mútuas para a realização conjunta de projetos específicos.
Esse artigo é a expressão daquilo que se costuma chamar de “cláusula anti resgate”, no contexto da crise europeia. Mas o texto deste dispositivo proíbe a UE e os estados membros de assumir as dívidas de outros estados membros, somente isso. Não os proíbe de fazer novos empréstimos para ajudar outros estados membros a superar uma crise.
O mais importante: onde se proíbe explicitamente a reestruturação de dívidas de um Estado membro? A resposta: em nenhuma parte. O artigo 125.1 não proíbe a redução das taxas de juros nem a extensão dos prazos, ou a postergação do pagamento dos juros. Schäuble e seus amigos do Ecofin (o conselho dos ministros da Fazenda da União Europeia) não possuem argumentos legais para se opor a uma restruturação da dívida grega. O único que podem fazer para impor essa máxima é se aferrar ao dogma neoliberal.
Embora isso pareça estranho, esta é a interpretação apoiada pelo Tribunal de Justiça da União Europeia (TJUE) no caso Pringle, contra o governo da Irlanda. O TJUE é a corte encarregada de interpretar e aplicar o estatuto da União Europeia. Esse caso foi iniciado pelo deputado irlandês Thomas Pringle, ao questionar o procedimento de criação e a legalidade em si do mecanismo europeu de estabilidade (MES). Esse mecanismo foi criado em 2010, após um trâmite curiosamente veloz, e formalizado graças a um tratado especial, em 2012. A função do MES é velar pela estabilidade macroeconômica e assegurar o funcionamento dos fundos de resgate que marcaram as primeiras respostas das instituições europeias diante da crise. No caso Pringle, o Tribunal desestimou a alegação de Pringle, tanto no tema de falhas de procedimento, como no aspecto medular sobre o MES.
A decisão do TJUE não surpreendeu os economistas e os apaixonados pelos dogmas do livre mercado. Mas, no âmbito judicial, ela foi vista com preocupação. Se trata de uma sentença superficial, que não corrige os vícios de origem de muitas mudanças introduzidas nos tratados constitutivos da UE para “tranquilizar os mercados financeiros”.
O exemplo anterior não é o único com bases legais inconsistentes. O programa do Banco Central Europeu (BCE) sobre transações monetárias diretas (OMT, por sua sigla em inglês) é outro exemplo importante. Esse mecanismo permite ao BCE comprar títulos de curto prazo no mercado secundário para reduzir o custo de financiamento para países europeus. Mas hoje, a controvérsia legal subsiste: o anúncio da criação do OMT numa coletiva de imprensa é quase o único fundamento “legal” do programa. Estou exagerando, claro, mas não muito.
Desde que a crise começou, a Justiça na União Europeia se encontra submetida a tensões insuportáveis. O “modo de emergência” tem levado as instituições a delegarem ao BCE vários tipos de ferramentas – algumas delas carecem de fundamentos legais robustos e outras simplesmente fazem com que a ideia de prestação de contas seja uma piada de mal gosto. O resgate é e será exclusividade dos amigos.
Hoje, os governos e instituições europeias respondem cada vez menos a la gente. O estado de direito se tornou o manto protetor da arbitrariedade. A ajuda e a flexibilidade para os amigos e aliados. A regra dura e a rigidez para os nossos inimigos. Essas são as verdadeiras regras de Schäuble e seus amigos.
A senhora Christine Lagarde disse, em 2011, com grande claridade: os líderes da União Europeia tiveram que violar a lei para salvar o euro. Muito antes dela, Ésquilo já havia dito que a primeira vítima de toda guerra é a verdade.
Tradução: Victor Farinelli
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