O direito e a mentira na crise europeia
Os líderes da União Europeia tiveram que violar a lei para salvar o euro.
Ésquilo já havia dito que a primeira vítima de toda guerra é a verdade.
Alejandro Nadal - La Jornada, México, na Carta Maior
Winston Churchill já dizia que
em tempos de guerra a verdade é tão valiosa que deve ser protegida por um
cinturão de mentiras. E na crise econômica também encontramos um fértil
ecossistema onde proliferam a mentira e a manipulação, para proteger a verdade,
ou o que resta dela.
Esta semana, depois que o Syriza
voltou a triunfar nas eleições gregas, a restruturação da dívida volta a ser um
tema de grande relevância. Tsipras e seu partido se apresentam para o
eleitorado e a opinião pública como os únicos capacitados para alcançar o
objetivo que escapou das suas mãos no primeiro mandato. Porém, nestas novas
tentativas, enfrentarão velhas mentiras.
Desde que a crise atingiu a
Europa, a cartilha reza que é preciso aplicar as regras e os tratados
fundamentais da união monetária. Essa retórica se refere, em primeira
instância, à necessidade de pagar as dívidas adquiridas, e em segundo lugar, à
impossibilidade de resgatar uma economia em perigo de se tornar insolvente.
Qual é o fundamento legal da
segunda “regra”? Normalmente, o argumento se baseia no artigo 125, parágrafo
primeiro, do Tratado da União Europeia, em sua versão consolidada. Esse dispositivo
diz que nem a UE nem os estados membros poderão assumir ou responder aos
compromissos dos governos centrais, autoridades regionais ou locais ou outras
autoridades públicas, ou empresas públicas dos estados membros, sem que isso
interfira nas garantias financeiras mútuas para a realização conjunta de
projetos específicos.
Esse artigo é a expressão
daquilo que se costuma chamar de “cláusula anti resgate”, no contexto da crise
europeia. Mas o texto deste dispositivo proíbe a UE e os estados membros de
assumir as dívidas de outros estados membros, somente isso. Não os proíbe de
fazer novos empréstimos para ajudar outros estados membros a superar uma crise.
O mais importante: onde se
proíbe explicitamente a reestruturação de dívidas de um Estado membro? A
resposta: em nenhuma parte. O artigo 125.1 não proíbe a redução das taxas de
juros nem a extensão dos prazos, ou a postergação do pagamento dos juros.
Schäuble e seus amigos do Ecofin (o conselho dos ministros da Fazenda da União
Europeia) não possuem argumentos legais para se opor a uma restruturação da
dívida grega. O único que podem fazer para impor essa máxima é se aferrar ao
dogma neoliberal.
Embora isso pareça estranho,
esta é a interpretação apoiada pelo Tribunal de Justiça da União Europeia (TJUE)
no caso Pringle, contra o governo da Irlanda. O TJUE é a corte encarregada de
interpretar e aplicar o estatuto da União Europeia. Esse caso foi iniciado pelo
deputado irlandês Thomas Pringle, ao questionar o procedimento de criação e a
legalidade em si do mecanismo europeu de estabilidade (MES). Esse mecanismo foi
criado em 2010, após um trâmite curiosamente veloz, e formalizado graças a um
tratado especial, em 2012. A função do MES é velar pela estabilidade
macroeconômica e assegurar o funcionamento dos fundos de resgate que marcaram
as primeiras respostas das instituições europeias diante da crise. No caso
Pringle, o Tribunal desestimou a alegação de Pringle, tanto no tema de falhas
de procedimento, como no aspecto medular sobre o MES.
A decisão do TJUE não
surpreendeu os economistas e os apaixonados pelos dogmas do livre mercado. Mas,
no âmbito judicial, ela foi vista com preocupação. Se trata de uma sentença
superficial, que não corrige os vícios de origem de muitas mudanças
introduzidas nos tratados constitutivos da UE para “tranquilizar os mercados
financeiros”.
O exemplo anterior não é o único
com bases legais inconsistentes. O programa do Banco Central Europeu (BCE)
sobre transações monetárias diretas (OMT, por sua sigla em inglês) é outro exemplo
importante. Esse mecanismo permite ao BCE comprar títulos de curto prazo no
mercado secundário para reduzir o custo de financiamento para países europeus.
Mas hoje, a controvérsia legal subsiste: o anúncio da criação do OMT numa
coletiva de imprensa é quase o único fundamento “legal” do programa. Estou
exagerando, claro, mas não muito.
Desde que a crise começou, a
Justiça na União Europeia se encontra submetida a tensões insuportáveis. O
“modo de emergência” tem levado as instituições a delegarem ao BCE vários tipos
de ferramentas – algumas delas carecem de fundamentos legais robustos e outras
simplesmente fazem com que a ideia de prestação de contas seja uma piada de mal
gosto. O resgate é e será exclusividade dos amigos.
Hoje, os governos e instituições
europeias respondem cada vez menos a la gente. O estado de direito se tornou o
manto protetor da arbitrariedade. A ajuda e a flexibilidade para os amigos e
aliados. A regra dura e a rigidez para os nossos inimigos. Essas são as
verdadeiras regras de Schäuble e seus amigos.
A senhora Christine Lagarde
disse, em 2011, com grande claridade: os líderes da União Europeia tiveram que
violar a lei para salvar o euro. Muito antes dela, Ésquilo já havia dito que a
primeira vítima de toda guerra é a verdade.
Tradução:
Victor Farinelli
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