22 setembro 2015

"Conspiração no Guadalupe"

A conspiração do romance de Marco Albertim

Urariano Mota, no Jornal GGN
Quando o escritor Marco Albertim faleceu em 10 de abril deste ano, sob o impacto do choque liguei para a redação de um jornal no Recife. Então, com o cadáver saído do necrotério, a repórter de plantão no domingo me perguntou “quem era Marco Albertim?”. Eu  respondi que para ele, o magnífico autor que partia, ainda não havia soado a hora da justiça. E como sempre acontece quando um repórter nos entrevista, o essencial passou despercebido. Quero dizer, o mais importante não foi desenvolvido em perguntas ou aprofundamento de significados. Passou ligeiro entre uma pauta e outra. Ou entre o “já chegou o café?” e o toque no celular, que lhe mandava um urgente WhatsApp. Se a vida passa e os jornais não a percebem, que dirá uma pessoa fundamental longe da categoria das celebridades? 
Mas o impossível ali, recupero agora.          
Chegava a ser irônico que, perseguido na ditadura, Marco Albertim ainda não conhecera a justiça anos depois da anistia. Se antes havia conhecido a negação absoluta de direitos e leis democráticas, até mesmo no tempo dos governos eleitos pelas urnas, quando podia ir e vir, discursar e escrever, ele continuava sem justiça. Mudavam-se os tempos, mudavam-se as vontades, e continuava mudo. O reconhecimento público não chegava. Para o fim da existência de um artista da palavra, a pergunta da repórter era de uma estação agressiva, e, vá lá o eufemismo, desconhecedora. “Quem foi Michel Teló?”, não se pergunta. Mas “quem era Marco Albertim?”, cabia. Em defesa, ela poderia dizer que o seu hard de famosos merecia receber um upgrade. E o chefe de redação, igualmente desconhecedor, a socorreria mais ferino com a frase “a memória dos jornais é muito seletiva”. Na verdade, sorrio com amargura, Marco Albertim ainda não havia sequer sido captado pelo flash fugaz da memória humana da redação. E a culpa não era da jovem repórter, que era esforçada e atenciosa. Ela havia até mesmo sido aplicada num dos 5 Ws do manual do repórter, no Who, quando perguntou quem era o ilustre falecido. A culpa – se usamos a palavra redutora – era do conjunto da sociedade que nos esmaga a todos, que pulveriza tudo como um pozinho à toa. 
E no entanto, o escritor Marco Albertim há muito devia ser conhecido em razão da excelência do que deixa escrito, e permanece. Entre muitos exemplos, destaco um do seu conto Uma noite no cabaré, do livro “Ingrid tinha alergia à a lama do Capibaribe”, publicado pela CEPE em 2012: 
“Do barulhento bordel restou a sala da frente, alumiada por um candeeiro fumacento. Prateleiras mofadas, furadas por cupins sob uma dezena de garrafas de cachaça, sortindo a vista de três homens e uma mulher. O vendeiro, com a barba desigual, os cabelos soltos, coçava o rosto com força, raiva. Engoliam com tremor convulso nas mãos, na garganta. A mulher, velha, perdera a inquietação de ocultar rugas com ruges inúteis; distraía-se com a bebida, no exame da rua abandonada. Os olhos luziam, corados, a cada gole. Tinha o juízo enfermo, e putas com pó de arroz no rosto dançavam na sua frente”.
E o conto segue, em clima, desenvolvimento e frases que são uma honra para a escrita de qualquer escritor. Ponto. Mas não, é preciso que se fale mais preciso do que realizou e continua a caminhar além dos dias presentes. Marco Albertim, insatisfeito em ser contista e autor de crônicas marcantes, na fronteira entre o literário e a reportagem, diria, mas digo, em textos de muito boa literatura como em “Palmares é uma poça de lama”, para mim o melhor quadro da devastação das enchentes em Pernambuco, ainda assim, Marco Albertim levantou voo de outra maneira, mais longo, no romance Conspiração no Guadalupe, que agora apresento. 
O livro já entra com ação, em um começo que prende a atenção, porque fala de amor, sexo e paixão na noite de Olinda. Um triângulo amoroso se anuncia já no táxi que leva Maújo para o clube Estrela, com Chica e Gertrudes. Triângulo? Mais. Se houvesse associação das relações amorosas com figuras geométricas no livro, seria mais próprio vê-las como um quadrilátero, com um ponto fora do espaço dos quatro, que ameaçava formar um pentágono. Num reflexo típico daqueles anos de ditadura, na noite da cidade de Olinda, os casais se formam e se desfazem.  Eles são amálgama de militantes socialistas e notívagos boêmios. O que vale dizer, políticos contra a ditadura, mas nada ortodoxos, porque são feitos do barro da experiência. 
“Os quatro cruzaram-se a dois metros um casal de outro. Maújo, àquela altura, julgava Gertrude e Caetano um casal; por sua comodidade com Chica, pela esperança de que a ex-parelha não ficasse deserdada de todo. Seria capaz de sentar na mesma mesa com os quatro juntos, cada par apostando na felicidade do outro; com ou sem o efeito de daiquiris.. “ 
Neste romance, há o reconhecimento e a legitimação criadora dos bares da noite de Olinda no tempo da repressão fascista. Quem diria? 
“O Estrela e o Maconhão têm em comum o apodrecimento do ar. Maújo e Chica o sorviam mudos, atenuando indistintas culpas. Acudia-os a sonoridade remota da rumba. Do lado de fora, dois casais tramavam o delírio noutro retiro, em cama multicor, como os olhos chispando liamba”. 
A descrição gastronômica é uma das melhores especialidades da escrita de Albertim. Há nele uma gula carnal, que faz da cama um alimento, à semelhança da mesa que é uma continuação do amor. Sabemos que assim é para a sensualidade de toda a gente. Mas se assim é, poucos a expressam, como aqui: 
“Ela riu, pressentindo a luxúria nos limites; riu feliz com a possibilidade de se apropriar da fervente luxúria. Ele manteve o corpo com o tórax sobre o ventre dela; sentiu, nas escamas do rosto mal barbeado, a coifa escura dos pentelhos podados nas laterais, com um traço em declive no meio. A felação mútua levou-a ao estupor... 
Depois do banho de mar, voltaram para o Maconhão; na mesma mesa, o mesmo garçom. Ovos com presunto, pães fatiados, manteiga, suco de laranja. A celebração não fora interrompida... 
- Beije-me. 
- Estou com fome. 
-  Moqueca?
- Quero peixe cru, descamado, cobertura de coentro. 
- Essa agora... 
- Essa agora. Estou com desejo. 
O garçom trouxe postas de pampo sem cabeça, sem a espinha dorsal, despeladas; ramos de coentro por cima, sal, molho de soja; folhas de hortelã e raspas de gengibre. Queria Chica sentir temperos fortes. Com o gengibre, abriria a boca para a brisa gelada..”. 
Este é o romance de Olinda. À medida que o lemos, mais claro se torna que é o livro da cidade, pela impregnação de lugares, sabores e pessoas que bem conhecemos, e como um segredo coletivo, de polichinelo, nem sempre dele falamos. Pela natureza do narrado é a Olinda na cidade alta, do sítio histórico ao Maconhão, com os seus intelectuais, artistas, jovens, álcool e fumo também. O Maconhão era o bar de histórias antológicas de quedas, fracassos e encontros. Nele, certa vez um amigo desejou ser solidário a uma professora, que embriagada se deitara ao lado de um cachorro sarnento no chão. Ele pediu que ela se levantasse daquele lugar sujo onde jazia ao lado do cachorro. E ela, rápido, com o sarcasmo no espírito e na boca amarga: 
- Por quê? Está com inveja? 
Aquilo era o Maconhão, mais conhecido pelo nome civil de Bar Atlântico. Ele é um lugar da dissolução de personagens. O bar que foi destruído, ali, ao lado do Fortim de Olinda, ou Fortim de São Francisco, ou Fortim do Queijo, no romance ele sempre  volta.   
“À meia-noite desceram para o Maconhão, de táxi. Muita gente, dentro e fora do bar. O salão escuro, fluorescente nas prateleiras de bebidas, brilho indeciso nas luzes da radiola e estrelas pingando raios nas mesas externas. Nas mesas, sonhos anarquistas, de felicidade impossível... “. 
O Pai Edu, em seu terreiro e palácio, ressurge. Este romance, poderia ser perguntado, não possui um certo Jorge Amado, quando apanha elementos de culto afro e substitui Salvador por Olinda? As semelhanças são exteriores, penso. Em Conspiração no Guadalupe não há uma substituição de paisagem, porque em Marco Albertim houve uma apropriação de Olinda, da sua paisagem que não é só física, mas humana. Neste sentido, ele pode assumir o lugar do narrador, do escritor que a cidade até hoje reclama. Uma Olinda entre o popular, o espírito irreverente, o demoníaco e sua rebeldia. 
No livro, vemos o terreiro em mistura a páginas onde recuperamos o prazer quase carnal daqueles dias, carnal de carne e do carnaval, de Olinda. Sem folclorizar o que muitos pensam ser folclórico. 
“O Homem da Meia-Noite despontara no começo da rua do Bonfim, rumo à praça, à avenida. Eles ficaram em pé, sobre o arrimo de tijolos no sopé do outeiro. Sem daiquiris, proveram-se de cervejas em latas. 
O boneco gigante, com os braços bambos, na frente da orquestra. Em volta, um cordão de segurança. Na frente dos músicos, a diretoria, meia dúzia de embonecados homens, usando roupas da mesma cor do boneco. No meio, junto ao presidente, o secretário da prefeitura; vestindo uma camisa de cetim alvíssimo, brilhosa; sorrindo, os dentes com o mesmo brilho da roupa, mesmo não sendo visto pela multidão.” 
No capítulo Lá vem Cariri Ali, os personagens, os subversivos em ação se organizam em meio à passagem do bloco, de modo mais criativo, deles próprios e do autor. 
“Cariri desceu a escadaria do Guadalupe, seguiu para o Varadouro mas entrou à esquerda para o Largo do Amparo; entrou na Estrada do Bonsucesso para parar lá embaixo. Os dois seguiram, discutindo os termos da carta. A multidão espremeu-se na descida estreita. Os dois foram empurrados, jogados por foliões sublevados. No calçamento disforme, uma burrinha, provavelmente com fome, carregando um homem com roupas de mascate. “Lá vem Cariri ali...”Os bêbados pulando em grupos de quatro, seis, segurando-se nos ombros; uns caíam, levantando-se com a ajuda dos outros; pisados nos pés, nas mãos, colididos nas costas. Os termos da carta...”. 
Entre os subversivos, em doce sonho jamais liberto além deste romance, Bajado, o artista de Olinda, adere à revolução. Bajado se torna um subversivo, mas sem forçar a nota, sem artificialismo em que seria notado o impossível. Se não creem, vão direto à página, para ver um Bajado em revolta contra as chamadas autoridades constituídas. Eu nem cito, para não estragar o prazer. 
É um romance que se lê com um sentimento agradável e grave ao mesmo tempo, se me entendem. Quero dizer, alegria das suas páginas, mas gravidade por saber das circunstâncias que cercaram a última hora do escritor. Este é o livro cuja publicação matou de alegria Marco Albertim, no dia em que recebeu a nova de que a editora o desejava. Penso, enfim, que este livro nos devolve o escritor, para sempre, à vida.   
“O mar bramiu feito uma orquestra. Maújo dormiu, sonhou com a parelha acenando-lhe adeuses felizes. Tinha asas azuis nas costas, um bebê de rosto indefinido no braço”. 
Eu soube que Marco Albertim morreu dormindo no bar onde foi digerir a notícia. Mas até há pouco eu não sabia que o personagem continuava vivo, anunciando  o seu autor.
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