Já
dá para ver que Jair Bolsonaro é um antiestadista
Em vez de dar a linha do governo,
presidente formou ministério que é um monstro de muitas cabeças
Ângela Alonso, Folha de S. Paulo
A
“nova política” fez aniversário de um mês. Nasceu entre promessas de renovação.
A tenra idade desaconselha vaticínios, mas a recém-nascida já exibe sua personalidade:
é do tipo que não deixa
ninguém dormir.
Seus
primeiros 30 dias foram uma eternidade para os adultos na sala: declarações
estrambóticas de ministros despreparados, liberação de posse de armas, suspeita
de vínculo dos Bolsonaro com milícias, a cirurgia do presidente e as manguinhas
de fora do vice.
O
destino do bebê é incógnito, mas nem precisa de quiromancia para ver que nasceu
sem a linha do estadista.
Muitos
os chamados, poucos os escolhidos, diz o livro sagrado. Muitos podem chegar ao
governo, poucos são aptos para conduzir um país.
O
estadista é da classe rara dos bem preparados. Não cai do céu, surge na grande
escola dos partidos, do convívio com os experientes, batiza-se no fogo das
crises. Domina, na definição do Houaiss, a “arte de governar”, exerce a
“liderança política com sabedoria e sem limitações partidárias”.
No livro de Nabuco que
leva a palavra no título, estadista é “o intérprete do interesse nacional”.
Seus perfis de homens de Estado do Império mostram que esta interpretação não é
unívoca nem aponta sempre no sentido da mudança: o “interesse nacional”
consiste muitas vezes em barrá-la. A simples defesa de reformas não produz,
pois, o estadista.
Nem
na definição do dicionarista nem na nabuquiana cabe Bolsonaro. Sua arte é a do
combate. Vale-se das táticas de guerra informacional para deslegitimar
oponentes e da imagem de homem
comum para produzir uma liderança projetiva —“ele é um de nós”.
Seus canhões da batalha eleitoral (“Brasil acima de tudo”, a arminha com as
mãos) em nada ajudam a ourivesaria da governança.
No
dia a dia da gestão, governar nada tem de espetaculoso. Consiste em milhares de
microdecisões que beneficiam uns em detrimento de outros, dão prestígio de um
lado e queimam o filme de outro. Por isso, o estadista ouve, negocia, mapeia
consequências antes de agir. Assume riscos calculados. E delega tarefas, nunca
responsabilidades.
Bolsonaro
é um antiestadista. Em vez de dar a linha do governo, formou um ministério que
é um monstro de muitas cabeças, sem uma dominante. Os espinheiros da estreia,
transferiu-os a Guedes, a Moro ou a Deus. Nenhum dos três foi eleito.
Também
lhe falta grandeza no trato de adversários. Foi irresponsável ao postar “grande
dia” quando um deputado se exilou por carência de garantias para exercício do
mandato. Faltou-lhe a nobreza de defender um direito constitucional e honrar um
dever cristão, quando seu antagonista preso foi impedido de se despedir do
irmão.
O
cerne de antiestadista se escancarou na Suíça, onde debutou como presidente de
fato, exposto a líderes tarimbados e à mídia internacional. Davos, como a ONU,
é palco majestático para o bom político. Ali se erigem reputações. Por isso,
capricha-se no discurso, cada palavra calculada.
Mas
é também um cadafalso. Nele caiu Bolsonaro, ao tropeçar no conteúdo, na
política miúda dos saguões e até no cronômetro, confundindo o fórum econômico com
o Twitter.
Na
falta de estadista no governo, o entorno pode exercer o poder de fato. O
general-vice o percebeu. Também pode ser a hora magna de as eminências do
Legislativo darem o rumo nos assuntos de Estado.
Mas a tão desejada “renovação” tampouco produziu estadistas parlamentares. Na Câmara, os novos vão do fardado com Bíblia ao famigerado ator pornô.
Mas a tão desejada “renovação” tampouco produziu estadistas parlamentares. Na Câmara, os novos vão do fardado com Bíblia ao famigerado ator pornô.
A
casa alta, onde deveria imperar a civilidade, a Constituição e o interesse
coletivo, sediou cenas rocambolescas. A disputa por seu comando teve lances que
romancistas evitariam por inverossímeis.
No
Brasil de hoje, a realidade é mesmo inacreditável. Houve voto em papel, cédula
sobressalente, roubo de pasta e apropriação do controle da mesa, mantido na
base do usucapião. Em sintonia com a colostomia presidencial, a sessão teve
momento escatológico, quando o mais provecto declarou ao microfone que ia “dar
uma mijadinha”. Como fecho de ouro, o novo chefe da Casa discursou louvando
mais a Deus que à Constituição.
Realmente,
o país precisa de reza forte. Ou, no vocabulário dos anos de chumbo tão em
moda, de um milagre, que converta a “nova política” em política democrática,
aquela que segue regras, cumpre acordos, acata resultados.
Sem
os préstimos da ministra da família, tão íntima do divino, talvez seja o caso
de estampar anúncios no aeroporto de Brasília: “Procuram-se estadistas”.
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