Caderninho
de frases
Cícero Belmar
Não digo que passou rapidamente, mas me surpreende constatar que
hoje é o primeiro dia do resto de 2020. Chegamos até aqui, um de junho, como se
tivéssemos atravessado um braseiro. Foi, e ainda está sendo, um primeiro
semestre bem difícil, em que o medo somado às limitações pautaram nossas
atitudes.
Ainda é cedo para dizer que
renascemos, por enquanto transportamos uma carga pesada. Até o começo do ano,
vivíamos achando que todos os caminhos nos levariam à praça pública e ao
parque. Com os olhos presos no cotidiano e os desejos observando somente as
delícias do mundo, caímos num poço fundo. Não estávamos preparados para essa
vida de recolhimento.
Passamos a nos sentir
excêntricos, não poder sair de casa é um modelo de vida estranho. Nosso
pensamento continuou na rua, mas o nosso corpo ficou entre as quatro paredes. O
isolamento contra o vírus é amargo, mas a única vacina ao nosso alcance.
Sabedor das nossas reclamações, o Deus Mercado passou a nos bombardear com
ideias contrárias ao recolhimento, como se esse modo temporário de vida
significasse ameaça ao capitalismo. Os arautos do sistema passaram a nos
instigar com o “exercício da liberdade”.
Tateando no escuro, chegamos
aos aqui e agora. O começo da quarentena (estou entrando para o terceiro mês
consecutivo) foi de muitas perguntas. Questões abrangentes sobre o passado, o
presente, o futuro, o significado do que vivemos, nossas limitações humanas. No
meu caso, fui logo descobrindo que as respostas não tinham urgência. As que me
chegavam, eram todas irônicas.
Descobri que não tenho nenhum
talento para ser filósofo na minha vida particular. Enquanto eu me tornava um
indagador inveterado e Platão não estava ao lado para me responder aos
questionamentos, terminei fazendo uns passeios dentro de mim.
Veio-me à lembrança algo
bastante prosaico, enquanto eu lia, no computador, uns provérbios populares que
os achei curiosos. Pessoas densas podem até torcer o nariz para esses ditos
populares, por os acharem fúteis. Mas, os achei ótimos.
Nessa leitura ao computador,
lembrei-me de um caderninho de capa coberta artesanalmente, que minha irmã
Socorro conservava, com muito cuidado, na adolescência. Era cheio de colagens
criativas, frases escritas com letras caprichadíssimas, assuntos separados por
temas. O caderninho era passado de mão em mão entre as amigas dela. Tipo clube
da Lulu. Continha reflexões, pensamentos e frases feitas de minha irmã e das
amigas dela. Eu ficava de olho e pegava aquele tesouro às escondidas. Socorro
jamais imaginou que eu era leitor assíduo do Caderno de Pensamentos. Confesso
que li.
Ler frases prontas, portanto,
não é um sintoma da pandemia. No computador, encontro umas que falam sobre o
tempo. Copiei algumas: “O tempo é a única esperança de quem já perdeu os
sonhos”. Tem mais: “Os dias talvez sejam iguais para um relógio, mas não para
um homem” (Essa, inclusive, deve ser de algum famoso). Nessa mesma linha: “O
tempo não apaga o que o coração já gravou”. (Está provado que só é possível
filosofar em alemão?).
Estou convencido de que ver
beleza nas frases populares também pode ser uma ferramenta importante para o
enfrentamento desse dia a dia com mais leveza.
*Cícero Belmar é escritor
e jornalista. Autor de contos, romances, biografias, peças de teatro e
livros para crianças e jovens. Membro da Academia Pernambucana de Letras.
Essas dicas de leitura continuam válidas https://bit.ly/3dVOJM7
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