26 abril 2020

Alternativa a Guedes?

“Plano do general Braga Neto sinaliza mudança de rumos”, avalia economista

“Mesmo sendo por enquanto um esboço, o Pró-Brasil tem a intenção de retomar o desenvolvimento com base na ação do Estado na economia”, diz o professor Nilson Araujo de Souza

Hora do Povo

O economista Nilson Araújo de Souza avaliou, em entrevista ao HP, que o programa apresentado pelo general Braga Neto, chefe da Casa Civil do governo, apelidado de Pró-Brasil, “sinaliza uma tentativa de mudança de rumos”.
O próprio fato de haver, segundo o economista, uma crítica orquestrada ao plano por parte de porta-vozes do mercado financeiro e de setores mais retrógrados do governo “indica claramente que a equipe de Guedes, e ele próprio, sentiram o golpe e estão reagindo à mudança de rumos”.
“Independente do nível em que vier a ser implementado, o lançamento do programa pró-Brasil já cumpriu seu papel. Mostrou que existe um caminho diferente do que a equipe de Guedes vem empurrando goela abaixo do país”, destacou o economista.
Leia a entrevista na íntegra:
HORA DO POVO – O ministro da Casa Civil, general Walter Braga Neto, anunciou na quarta-feira (22) o programa Pró-Brasil, que prevê investimentos em obras públicas “para a recuperação de toda estrutura afetada pelo coronavírus”. Qual a sua avaliação dessa iniciativa?
NILSON ARAÚJO DE SOUZA – Independente do nível em que vier a ser implementado, o lançamento do programa pró-Brasil já cumpriu seu papel. Mostrou que existe um caminho diferente do que a equipe de Guedes vem empurrando goela abaixo do país. O de Guedes, na verdade, é um descaminho. Em oposição ao programa de Guedes, que, no seu ultraneoliberalismo doentio, pretende entregar todo o patrimônio público ao capital estrangeiro e vem arrasando a economia, a proposta do general Braga Neto tem a intenção de retomar o desenvolvimento com base na ação do Estado na economia. A nossa história é rica em lições de que a economia só cresceu quando o Estado bancou o jogo. Foi assim com Getúlio e com JK e foi assim com o II PND de Geisel. Mas, por enquanto, o programa ainda é um esboço. Foram apresentados sete slides, em que se desenham as linhas gerais.
Combina a proposta de realização de investimentos públicos com o estabelecimento de regras para destravar o investimento privado, a realização de concessões e adoção de política de crédito. Ainda está muito indefinido e o que existe de definição é insuficiente, além de haver um desbalance entre a promessa de investimento público com a expectativa de concessões para viabilizar o investimento privado. Mas aponta na direção certa. Sintomaticamente, estão apoiando o plano os mesmos militares que, no domingo, 19 de maio, se recusaram a acompanhar Bolsonaro na aventura golpista.
HP – A ideia do plano é de retomada da economia pós-crise através de investimentos públicos em obras de infraestrutura e de investimentos privados (através de concessões). Você acha que o Estado tem recursos para isso? Em sua opinião, haverá investidores privados interessados em investir nesta retomada?
NILSON – Temos primeiro que ver o contexto em que esse plano é apresentado. Entramos no sétimo ano de crise. Recessão profunda de 2014 a 2016, estagnação de 2017 a 2019 e possibilidade de depressão em 2020, ao combinar as tendências recessivas que já vinham de antes com o impacto econômico da pandemia. Tem que começar por aí. O principal é pagar as pessoas para ficarem em casa. E não apenas os trabalhadores informais, os subempregados e desempregados (em torno de 70 milhões), mas também os com carteira assinada, particularmente os das micro, pequenas e médias empresas (cerca de 25 milhões). Essas empresas também têm que receber apoio financeiro para não sucumbirem. Esse é o caminho para salvar vidas e simultaneamente preparar a economia para voltar a funcionar tão logo passe o efeito da pandemia. O ministro Guedes ameaçou que não havia dinheiro para isso, que dinheiro não cai do céu.
Mas, logo se descobriu que havia 1,3 trilhão de reais no caixa único do Tesouro. E também, durante o período de recessão, o governo pode emitir moeda sem causar inflação. Isso porque, com capacidade ociosa das empresas, o aumento da demanda provocado pela emissão monetária pode ensejar o aumento da produção e, por conseguinte, da oferta, em lugar de pressionar os preços para cima. Isso é keynesianismo puro: pagar as pessoas para cavar e tapar buraco. Mas, para a recuperação da economia e a retomada do desenvolvimento, não basta isso. Precisa de mais investimento e, para isso, mais Estado na economia. Depois da grande crise do capitalismo mundial de 1914 a 1945 (duas guerras mundiais e uma grande depressão), foi uma forte ação do Estado na economia que possibilitou não apenas recuperar a economia mundial, mas também promover um desenvolvimento prolongado. Acho que, nas atuais circunstâncias, de crise braba, não se deve esperar muito do investimento privado por meio de concessões. As empresas nacionais, ao contrário, estão precisando de forte apoio do governo para sobreviverem. E o capital estrangeiro? Esse vem se evadindo do país desde o ano passado. O dinheiro tem que vir do governo.
Sempre tem essa cantilena de que o governo não tem dinheiro. Como assim, se ele tem poder de emissão monetária? Como assim, se ele tem o poder de transferir renda de uma área para outra por meio da tributação? Por exemplo, taxando remessas de lucros e dividendos, taxando distribuição de dividendos, taxando grandes fortunas… O economista José Luís Oreiro propõe que o Banco Central adquira títulos primários emitidos pelo Tesouro. É como se fosse uma dívida do marido com a mulher. Fica tudo em família. Obviamente, para o Governo realizar esses investimentos, precisa manter a suspensão da lei do teto de gastos e a regra de ouro, que foram suspensas durante a calamidade da pandemia.
HP – Concomitante à apresentação do plano por Braga Neto, houve a decisão do governo de suspender e adiar algumas privatizações que estavam programadas, como Eletrobrás e Correios. Como você avalia essa decisão?
NILSON – Programa com ação do Estado na economia e suspensão de privatizações parece uma sinalização de que, dentro do governo, particularmente entre os militares que participam do governo, está se buscando um outro caminho, o oposto do perseguido pela equipe econômica de Guedes. E a turma do Guedes acusou o golpe. Apelidou o “Plano pró-Brasil” de “Dilma 3”, disse que, se não há dinheiro no governo, não há como fazer um programa baseado no investimento público. E por aí foi…
HP – Durante a apresentação do programa foi falado em valores que poderiam chegar a R$ 250 bilhões em concessões e R$ 30 bilhões em obras públicas. Como você avalia esses valores?
NILSON – Insuficientes, desbalanceados e, no que toca ao investimento privado, sem garantia de que ocorrerão. Apenas R$ 30 bilhões de investimento público e R$ 250 bilhões de concessões. Ora, até mesmo nas economias capitalistas mais desenvolvidas, tem sido o investimento público que tem alavancado o investimento. Foi assim no passado. E, agora, mais ainda. No mundo inteiro, o Estado, depois de demonizado durante quase três décadas, começou a retornar na crise deflagrada em 2007 e agora ressurge com peso para enfrentar a crise atual. Só que, enquanto naquela crise, o Estado entrou para salvar os bancos, agora, além de salvar os bancos deles mesmos, está colocando dinheiro na economia real e nas mãos do povo. Numa economia subdesenvolvida, a necessidade do investimento público é maior ainda. Além disso, como já disse, as empresas não estão com dinheiro para arrematar as concessões e fazer os investimentos. Dada a gravidade da crise, as nacionais estão com os cofres vazios. E o capital estrangeiro, em lugar de vir para cá, está se evadindo. R$ 30 bilhões de investimento público não dá nem para tapar o buraco de um dente. Muito menos para acelerar o crescimento econômico, como propõem os formuladores do plano. Na nossa última experiência de aceleração do crescimento, entre a segunda metade da década de 1960 e a década de 1970, quando se implementou o II PND, a taxa de investimento público esteve em torno de 7% do PIB. Isso, se comparado ao PIB de hoje (7,3 trilhões de reais), daria R$ 500 bilhões por ano.
HP – A equipe econômica do governo não estava presente no momento em que o general Braga Neto apresentava o programa. Você vê algum significado nesta ausência de Guedes e de seus auxiliares na reunião em que o plano foi debatido? Alguns integrantes da equipe de Guedes, como Salim Mattar, Secretário de Desestatização, criticaram o programa apresentado por Braga Neto alegando que o Estado não tem recursos e que os investimentos só virão da iniciativa privada, através das privatizações. Como você avalia essa opinião?
NILSON – Isso indica claramente que a equipe de Guedes, e ele próprio, sentiram o golpe e estão reagindo à mudança de rumos. Membros destacados da equipe econômica, como Adolfo Sachsida e Mansueto Almeida, afirmaram que não há dinheiro para alavancar uma retomada da economia com investimento público. Segundo Sachsida, “o espaço fiscal [para gastos] da economia brasileira é muito mais limitado… O espaço fiscal não é muito amplo”. No que foi reforçado pelo secretário Mansueto Almeida, que declarou: “É muito claro que [para] a retomada do crescimento do país, a gente vai ter que aumentar muito a taxa de investimento. E é claro que o governo não tem essa força para aumentar muito, para custear o investimento, via investimento público, porque falta espaço fiscal, independentemente de teto, mesmo que não existisse teto de gastos, o governo não teria espaço, para aumentar muito investimento público porque teria que se endividar muito”.
Reforçando o discurso dos outros secretários do Ministério da Economia, Salim Matar, que também é dono da Localiza, declarou: “o governo não tem mais dinheiro. Tem de usar dinheiro privado. E tem muito dinheiro privado no mundo”. E deu sua “solução”: “depois que essa crise se for, temos de tomar algumas providências. E a primeira é a venda de ativos da União. Temos também de acelerar o programa de concessões na infraestrutura e continuar com as reformas estruturantes, que, no longo prazo, vão cortar os custos do Estado”. Ou seja, no dia seguinte ao lançamento do programa de Braga Neto, fizeram uma verdadeira campanha contra seus fundamentos. Repetem tanto isso que parece um mantra.
Mas não é nem questão de fé. É dogma puro. Ou por que não dizer? Expressão de seus compromissos com o capital financeiro especulativo, de dentro e de fora do país. Pois, conforme demonstrei antes, o Estado tem como conseguir dinheiro. Inclusive para apoiar as empresas nacionais, que estão quebrando na crise – portanto, sem dinheiro para investir em concessões. Essa reação tão virulenta da equipe econômica só demonstra que o plano, apesar das insuficiências aqui destacadas, está na direção certa.
HP – O chamado “mercado” reagiu com muitas críticas ao programa dizendo que ele significa uma sinalização de que as reformas estruturais, defendidas pela equipe de Guedes, estariam sendo abandonadas. Como você avalia essas críticas?
NILSON – Pode não ser isso ainda, mas é um bom sinal. O chamado mercado, na verdade, são os monopólios, principalmente os monopólios financeiros. Eles querem que o Estado intervenha na economia, sim, mas apenas para garantir sua reprodução e seus gordos lucros. Eles, por exemplo, não reclamaram que o governo liberou para os bancos cerca de R$ 1,2 trilhão num abrir e fechar de olhos e, ainda por cima, encaminhou para o Congresso o chamado “orçamento de guerra”, que, dentre outras coisas, autoriza o Banco Central a comprar títulos dos bancos, que foram apodrecendo ao longo dos anos. Eles só se interessam pela economia real quando é para se apropriar do valor ali gerado. As chamadas reformas, como já demonstrou a trabalhista e a previdenciária, não são outra coisa do que retirar direitos do povo e dinheiro da economia real para encher as burras dos bancos de dinheiro.
HP – Outra crítica de representantes do mercado financeiro ao programa defendido por Braga Neto é que ele seria irresponsável do ponto de vista fiscal, já que o país deverá sair da crise do coronavírus com um aumento da dívida pública e deverá adotar políticas de austeridade fiscal e não de frouxidão fiscal. O que você pensa sobre isso?
NILSON – Primeiro, não precisa se endividar para bancar a renda básica emergencial e os demais apoios financeiros para a economia real. Como falei antes, havia no Tesouro R$ 1,3 trilhão; além do que, como também me referi antes, o governo pode emitir moeda sem incidência inflacionária ou endividar o Tesouro junto ao Banco Central, como defende o prof. Oreiro.
Na verdade, o endividamento de um ente público federal com outro é como se fosse dívida zero. Fica tudo em casa. A insistência em políticas de “austeridade”, isto é, corte de investimento, de gasto social, de direitos e do salário do trabalhador e de crédito, já demonstrou que, além de não equilibrar as contas públicas, acarreta como resultado estagnação e recessão, desemprego e empobrecimento da população.
Saiba mais https://bit.ly/2ySRLkm

Nenhum comentário: