21 abril 2020

Imprescindível ciência

Nicolelis: coronavírus revelou “quão fúteis eram nossas prioridades”

Para cientista que atua no mapeamento do coronavírus no Nordeste, Brasil paga preço de Teto de Gastos e desvalorização da ciência e saúde

CartaCapital

Os números dobram, a estatística diária de isolamento aumenta e, de repente, cai após um burburinho de que é tudo histeria, de que a vida deve voltar ao normal e de que há um medicamento milagroso que irá exterminar o coronavírus do Brasil. No entanto, para uma parte da vanguarda de enfrentamento ao coronavírus, que fica nos bastidores da pandemia, não há tempo para firulas. “Essa novela política, esse pandemônio, é totalmente secundário. Para mim, a pandemia é o foco.”
O autor da fala é Miguel Nicolelis, neurocientista brasileiro e uma das referências da ciência nacional que, em conjunto a uma equipe de mais de 700 colaboradores, atua no Comitê Científico para o Combate ao Coronavírus, formado pelo Consórcio Nordeste para buscar saídas à epidemia na segunda região mais atingida pela Covid-19 no Brasil. Ao mesmo tempo, o grupo incentiva a união de cientistas na busca por novas formas de testagem laboratorial, monitoramento do comportamento da epidemia e, também, uma nova visão de sociedade no cenário pós-crise.
Nas conferências virtuais e nos laboratórios, Nicolelis relata que há um trabalho “incansável” de pesquisadores de epidemiologia, ciência da computação e matemáticos para prever qual cidade será o novo foco da doença. Com um modelo de diagnóstico clínico por meio de um aplicativo, Nicolelis relata que a intenção é aplicar uma tática de guerra contra o avanço da covid-19: “Nós vamos criar uma Brigada de Saúde de emergência para tentar ir onde os casos estão aparecendo. É a única forma de combater uma pandemia: você ataca o inimigo antes dele atacar a gente”.
Em entrevista a CartaCapital, Nicolelis explica mais sobre o trabalho do Comitê, analisa quais os efeitos práticos da demora do Brasil em testar e orientar de maneira precisa a população – incluindo os governadores, que devem “traduzir” os significados técnicos obtidos por suas equipes ao povo – e deixa no ar uma provocação a uma sociedade pós-coronavírus: quais serão as mudanças que os poderes estão dispostos a terem para não deixarem desabastecidos seus sistemas de saúde e tecnologia, como o Brasil e tantos outros insistem em fazer?
“A ciência, saúde e educação têm que ser prioridade zero de qualquer governo de países como o nosso. Os economistas têm que ir pra sala do fundo fazer conta e serem criativos para pagar o que as pessoas de saúde, ciência e educação dizem que precisam.”
Leia a entrevista completa:
CartaCapital: Qual a opinião do senhor sobre a troca de ministros nesse momento? Como foi a gestão do ministro Mandetta até então? E o senhor conhece o dr. Teich? 
Miguel Nicolelis: Eu estou trabalhando em uma guerra. Estou tentando operacionalizar uma guerra. O jogo político não tem o meu interesse. Não conheço o novo ministro, não conheço o ministro que saiu, só sei que a resposta brasileira não foi nem perto do que deveria ter sido. Criou-se uma mensagem confusa que desorientou a população e nós estamos pagando muito alto por isso.
Sai seis e entra meia dúzia. É meio absurdo você trocar uma liderança no meio de uma guerra, são poucos os precedentes históricos, especialmente com um inimigo desconhecido e em um país onde existem fatores de risco altíssimo. Então essa novela política, esse pandemônio, é totalmente secundário. Para mim, a pandemia é o foco.
CC: O senhor diz que a resposta do Brasil foi confusa e nem perto do que deveria ter sido. Como ela poderia ter sido, então?
MN: Nós perdemos três meses desde que a China mostrou a dimensão da coisa. Nós não abastecemos o país de insumos, não fomos atrás de reservas de equipamentos, não enviamos uma mensagem coerente, não ajudamos os governos dos estados rapidamente.
A resposta foi tardia. O governo brasileiro menosprezou a gravidade dessa pandemia. Quando a gente acordou, os EUA já tinham varrido o mercado internacional de respiradores, o de máscaras. Trocar um ministro no meio de uma crise dessas é perder tempo nesse innuendo, nessa novela sem fim, com uma completa falta de empatia humana -porque eu ainda não vi um pronunciamento do governo federal oferecendo condolências aos familiares dos que morreram na pandemia. Nesse momento, você deveria combater o verdadeiro inimigo, q ue é a pandemia.
CC: Como avalia a resposta dos testes no Brasil? É esse o caminho a seguir, como seguiu Alemanha e Coreia do Sul?
MN: Esse é o caminho inicial dos países que deram conta da pandemia rapidamente. Hong Kong, Coreia do Sul, Taiwan, Singapura, todos foram encontrar os pacientes suspeitos. Testaram, isolaram esses pacientes, deram todo o cuidado e impediram que eles transmitissem a doença.
O governo só tem dois testes: o teste rápido, que é mais impreciso, e o RT-PCR, baseado em uma técnica mais sensível que dá resultados mais confiáveis, e que o Brasil tem condições de produzir, mas ainda faz muito pouco.
O problema agora é pegar o trem andando: é como se o trem estivesse passando na estação a 50 km/h e você tá na estação e vê que o trem não vai parar, e você tem que se agarrar a algo. A produção mundial de testes está no limite, têm vários aproveitadores entrando no mercado com testes que não são confiáveis, com 30% de sensibilidade – os testes que serão usados confiavelmente são de 60%. Quem vai produzir? Quem vai entregar? Qual será a logística? São problemas gigantescos que deveriam ter sido equacionados meses atrás.
CC: Diversos cientistas têm corrido contra o tempo para desenvolver um teste efetivo para ser produzido em massa no Brasil, inclusive com custos menores. Existem possibilidades promissoras no cenário atual?
MN: Nós temos pesquisadores na área de moléstias infecciosas, imunologia, sorologia, que são reconhecidos internacionalmente. A Fiocruz (Fundação Oswaldo Cruz) deveria ser considerada um patrimônio da humanidade, na minha opinião, porque é um centro de referência internacional – não é à toa que a OMS (Organização Mundial da Saúde) a reconheceu como um dos lugares que podem receber amostras para estudar o vírus.
Eu não tenho a menor dúvida da genialidade dos pesquisadores do Brasil, e as pessoas estão trabalhando que nem loucas. É gente de todas as faixas etárias e níveis acadêmicos trabalhando. Essa é a grande esperança nesse momento, e essa grande esperança, de certa maneira, revelou quão fúteis eram as nossas prioridades antes da pandemia.
A primeira lição é que essa visão neoliberal de tirar dinheiro da pesquisa básica, dos centros de pesquisa e sistemas de saúde públicos é um dos maiores fatores que nos colocou nessa situação. No mundo do futuro, essas áreas têm que ser priorizadas porque elas são fundamentais, porque elas nos permitem evitar eventos cataclísmicos – não é o caso desse – que podem levar à extinção da espécie. Se, no meio dessa pandemia, acontecer algo a mais com grandes repercussões, a coisa começa a ficar feia para nós.
Os números dobram, a estatística diária de isolamento aumenta e, de repente, cai após um burburinho de que é tudo histeria, de que a vida deve voltar ao normal e de que há um medicamento milagroso que irá exterminar o coronavírus do Brasil. No entanto, para uma parte da vanguarda de enfrentamento ao coronavírus, que fica nos bastidores da pandemia, não há tempo para firulas. “Essa novela política, esse pandemônio, é totalmente secundário. Para mim, a pandemia é o foco.”

O autor da fala é Miguel Nicolelis, neurocientista brasileiro e uma das referências da ciência nacional que, em conjunto a uma equipe de mais de 700 colaboradores, atua no Comitê Científico para o Combate ao Coronavírus, formado pelo Consórcio Nordeste para buscar saídas à epidemia na segunda região mais atingida pela Covid-19 no Brasil. Ao mesmo tempo, o grupo incentiva a união de cientistas na busca por novas formas de testagem laboratorial, monitoramento do comportamento da epidemia e, também, uma nova visão de sociedade no cenário pós-crise.
Nas conferências virtuais e nos laboratórios, Nicolelis relata que há um trabalho “incansável” de pesquisadores de epidemiologia, ciência da computação e matemáticos para prever qual cidade será o novo foco da doença. Com um modelo de diagnóstico clínico por meio de um aplicativo, Nicolelis relata que a intenção é aplicar uma tática de guerra contra o avanço da covid-19: “Nós vamos criar uma Brigada de Saúde de emergência para tentar ir onde os casos estão aparecendo. É a única forma de combater uma pandemia: você ataca o inimigo antes dele atacar a gente”.
Em entrevista a CartaCapital, Nicolelis explica mais sobre o trabalho do Comitê, analisa quais os efeitos práticos da demora do Brasil em testar e orientar de maneira precisa a população – incluindo os governadores, que devem “traduzir” os significados técnicos obtidos por suas equipes ao povo – e deixa no ar uma provocação a uma sociedade pós-coronavírus: quais serão as mudanças que os poderes estão dispostos a terem para não deixarem desabastecidos seus sistemas de saúde e tecnologia, como o Brasil e tantos outros insistem em fazer?
“A ciência, saúde e educação têm que ser prioridade zero de qualquer governo de países como o nosso. Os economistas têm que ir pra sala do fundo fazer conta e serem criativos para pagar o que as pessoas de saúde, ciência e educação dizem que precisam.”
Leia a entrevista completa:
CartaCapital: Qual a opinião do senhor sobre a troca de ministros nesse momento? Como foi a gestão do ministro Mandetta até então? E o senhor conhece o dr. Teich? 
Miguel Nicolelis: Eu estou trabalhando em uma guerra. Estou tentando operacionalizar uma guerra. O jogo político não tem o meu interesse. Não conheço o novo ministro, não conheço o ministro que saiu, só sei que a resposta brasileira não foi nem perto do que deveria ter sido. Criou-se uma mensagem confusa que desorientou a população e nós estamos pagando muito alto por isso.
Sai seis e entra meia dúzia. É meio absurdo você trocar uma liderança no meio de uma guerra, são poucos os precedentes históricos, especialmente com um inimigo desconhecido e em um país onde existem fatores de risco altíssimo. Então essa novela política, esse pandemônio, é totalmente secundário. Para mim, a pandemia é o foco.
CC: O senhor diz que a resposta do Brasil foi confusa e nem perto do que deveria ter sido. Como ela poderia ter sido, então?
MN: Nós perdemos três meses desde que a China mostrou a dimensão da coisa. Nós não abastecemos o país de insumos, não fomos atrás de reservas de equipamentos, não enviamos uma mensagem coerente, não ajudamos os governos dos estados rapidamente. 
A resposta foi tardia. O governo brasileiro menosprezou a gravidade dessa pandemia. Quando a gente acordou, os EUA já tinham varrido o mercado internacional de respiradores, o de máscaras. Trocar um ministro no meio de uma crise dessas é perder tempo nesse innuendo, nessa novela sem fim, com uma completa falta de empatia humana -porque eu ainda não vi um pronunciamento do governo federal oferecendo condolências aos familiares dos que morreram na pandemia. Nesse momento, você deveria combater o verdadeiro inimigo, que é a pandemia.
CC: Como avalia a resposta dos testes no Brasil? É esse o caminho a seguir, como seguiu Alemanha e Coreia do Sul?
MN: Esse é o caminho inicial dos países que deram conta da pandemia rapidamente. Hong Kong, Coreia do Sul, Taiwan, Singapura, todos foram encontrar os pacientes suspeitos. Testaram, isolaram esses pacientes, deram todo o cuidado e impediram que eles transmitissem a doença.
O governo só tem dois testes: o teste rápido, que é mais impreciso, e o RT-PCR, baseado em uma técnica mais sensível que dá resultados mais confiáveis, e que o Brasil tem condições de produzir, mas ainda faz muito pouco.
O problema agora é pegar o trem andando: é como se o trem estivesse passando na estação a 50 km/h e você tá na estação e vê que o trem não vai parar, e você tem que se agarrar a algo. A produção mundial de testes está no limite, têm vários aproveitadores entrando no mercado com testes que não são confiáveis, com 30% de sensibilidade – os testes que serão usados confiavelmente são de 60%. Quem vai produzir? Quem vai entregar? Qual será a logística? São problemas gigantescos que deveriam ter sido equacionados meses atrás.
CC: Diversos cientistas têm corrido contra o tempo para desenvolver um teste efetivo para ser produzido em massa no Brasil, inclusive com custos menores. Existem possibilidades promissoras no cenário atual?
MN: Nós temos pesquisadores na área de moléstias infecciosas, imunologia, sorologia, que são reconhecidos internacionalmente. A Fiocruz (Fundação Oswaldo Cruz) deveria ser considerada um patrimônio da humanidade, na minha opinião, porque é um centro de referência internacional – não é à toa que a OMS (Organização Mundial da Saúde) a reconheceu como um dos lugares que podem receber amostras para estudar o vírus.
Eu não tenho a menor dúvida da genialidade dos pesquisadores do Brasil, e as pessoas estão trabalhando que nem loucas. É gente de todas as faixas etárias e níveis acadêmicos trabalhando. Essa é a grande esperança nesse momento, e essa grande esperança, de certa maneira, revelou quão fúteis eram as nossas prioridades antes da pandemia.
A primeira lição é que essa visão neoliberal de tirar dinheiro da pesquisa básica, dos centros de pesquisa e sistemas de saúde públicos é um dos maiores fatores que nos colocou nessa situação. No mundo do futuro, essas áreas têm que ser priorizadas porque elas são fundamentais, porque elas nos permitem evitar eventos cataclísmicos – não é o caso desse – que podem levar à extinção da espécie. Se, no meio dessa pandemia, acontecer algo a mais com grandes repercussões, a coisa começa a ficar feia para nós.
A ciência, saúde e educação têm que ser prioridade zero de qualquer governo de países como o nosso. Os economistas têm que ir pra sala do fundo fazer conta e serem criativos para pagar o que as pessoas de saúde, ciência e educação dizem que precisam. Você ter um país com uma PEC de Teto de Gastos… isso custa. O outro lado dessa equação é o número de mortos. Os países que apostaram na ciência e não a destituíram de seu devido lugar estão ganhando a batalha contra o vírus. Os países do processo inverso, incluindo os EUA, estão perdendo feio.
CC: O senhor integra o Comitê Científico do Consórcio Nordeste, que estuda como o coronavírus se comporta na região. Atualmente, o Nordeste é a segunda região mais atingida pela epidemia: vocês já encontraram um porquê? 
MN: Uma análise epidemiológica detalhada vai levar tempo. Eu não sou o especialista, mas tenho falado com gente brilhante, como o Antônio Lima, chefe da epidemiologia de Fortaleza, que me alimenta de informações todos os dias. A minha hipótese é que Recife, Salvador, Natal e Fortaleza se transformaram em grandes focos pela entrada de voos internacionais e pela demora em restringir o espaço aéreo brasileiro, como outros países fizeram – outro absurdo que demonstra a falta de conhecimento mínimo do governo federal.
Além disso, você tem áreas metropolitanas com alta densidade demográfica. Logo depois do decreto de quarentena do governador Camilo Santana (PT-CE), você vê o efeito em 4 ou 5 dias da curva achatando em Fortaleza. Mas, pela transmissão comunitária, você teve a infecção se espalhando dessas capitais para o interior.
Por isso, nós estamos fazendo recomendações para os governadores para trancar o Nordeste: diminuir totalmente o trânsito de ônibus intermunicipais e estaduais, reduzir ao máximo o fluxo de carros para o interior e, combinando com os dados georreferenciados que teremos pelo nosso aplicativo, nós vamos poder dar informações diárias, como se fosse uma previsão do tempo: “amanhã, cidade X vai se transformar no novo foco. Cidade X tem que parar de ter trânsito de automóvel saindo da cidade, tem que aumentar o distanciamento social.”
CC: Pode falar mais sobre esse aplicativo?
MN: Aqui no Comitê Científico, desenvolvemos um aplicativo em que a população relata os sintomas e a gente, na falta dos testes massivos, usa do diagnóstico clínico. Iremos ligar essa informação com modelos matemáticos em tempo real para visualizar onde estão aparecendo os casos confirmados do ponto de vista clínico. O paciente mais grave irá receber uma chamada telefônica de um médico para orientá-lo e dizer qual é a unidade de saúde mais próxima. Para isso, nós vamos criar uma Brigada de Saúde de emergência, para tentar ir onde os casos estão aparecendo. É a única forma de combater uma pandemia: você ataca o inimigo antes dele atacar a gente.
Também criamos uma plataforma virtual, chamada Projeto Mandacaru, que já tem mais de 700 colaboradores, entre brasileiros e estrangeiros, que estão nos fornecendo subsídios. Estamos fazendo um casamento da ciência, com virologista conversando com cientista da computação, engenheiro de tráfego e com gente da telecomunicação. Já nos primeiros dias dessa plataforma, nós começamos a criar uma análise multidimensional do coronavírus no Nordeste, e isso é algo novo: começamos a calcular a possibilidade de espalhamento e o risco para o sistema de saúde de todas as microrregiões do Nordeste.
Temos informações da malha rodoviária, do fluxo de trânsito e os dados sobre a distribuição dos leitos de enfermaria e de UTI. Tudo será conectado de maneira que possamos fornecer em tempo real uma visão panorâmica de qual cidade está sendo afetada e quais os troncos rodoviários que podem explicar o espalhamento, o que irá guiar as decisões dos governadores.
CC: Na avaliação do senhor, o Nordeste tem tentado unir forças regionais contra possíveis desmandos do governo federal, já que o presidente Jair Bolsonaro tem embates políticos com os governadores da região?
MN: O Comitê Científico não tem nenhuma disposição política porque o vírus não tem ideologia. O governo federal tem que ajudar os estados, tem que mandar muito mais dinheiro para os estados do Nordeste do que está mandando, porque o Brasil não tem só a região Sudeste. Tem a Região Norte, que está entrando em colapso, como é o caso de Manaus e Macapá. E não existe nenhum bairrismo nas nossas decisões – tanto é que estamos trabalhando com pessoas de todas as regiões do Brasil e com pesquisadores estrangeiros.
Isso aí é algo que você tem que perguntar para os governadores. Não tenho interesse em me envolver com isso, porque todos os políticos do mundo deveriam se dar conta que todos os cálculos eleitorais que eles fazem deveriam ser jogados na lata do lixo. O mundo que eles conheciam acabou. O mundo que nós vivemos hoje é outro mundo, e o mundo que viveremos depois dessa pandemia é outro. Se eu posso aconselhar qualquer pessoa nesse mundo, é dizer que a temática é outra: é salvar vidas, é amenizar o sofrimento. E, no Brasil, essa não é uma tarefa trivial, pois esse é um país sem uma rede de esgoto universal.
Outro dia, a gente soltou um estudo mostrando que o vírus sobrevive nas fezes até 30 dias depois da pessoa não ter mais o vírus nas vias respiratórias. O que isso significa em um país com uma quantidade enorme de pessoas sem acesso ao saneamento? Outros vírus sobrevivem em fezes também, não é algo novo, mas, dada a letalidade desse vírus, você saber de um dado desses é fundamental.
A resposta imunológica das pessoas tem sido muito fraca, e eu tenho conversado sobre isso com colegas infectologistas, porque pode ser um fator limitante no desenvolvimento das vacinas ou mesmo no uso do plasma das pessoas infectadas que sobreviveram.
São detalhes biológicos que precisam ser compilados, amarrados, traduzidos e explicados não só para os governadores, mas para a população. Porque o cara pensa: ‘Pô, eu tô em casa porque mandaram, perdi meu emprego, minha família tá sem recursos: como é que vou justificar isso para mim mesmo e para meus filhos?’.
CC: O que precisamos fazer, daqui para a frente, para superar o coronavírus? 
MN: No momento, a recomendação mais fundamental é o distanciamento social, eu não tenho a menor dúvida. O mundo inteiro está tomando as medidas certas. Eu queria saber o que existe de diferente aqui… e eu sei: existe uma completa negação da ciência, da medicina.
Os caras saem dando drogas e medicamentos que não têm a menor eficácia para as pessoas, com a justificativa de que precisam “salvar um paciente” – mas você vai salvar como, se irá induzir a pessoa a um ataque cardíaco? Tem professor titular da Faculdade de Medicina da USP (Universidade de São Paulo) dando entrevista para jornais dizendo que os cientistas levam “muito tempo” para demonstrar a eficácia das drogas. Ele queria o quê? Que liberássemos drogas a esmo, para ele justificar os absurdos que eles preconizam?
No Comitê Científico, tem também um comitê de direitos humanos, justiça e segurança que, entre outras funções, discute o cenário futuro. O que vai acontecer? Quais serão as implicações geopolíticas e para o Brasil a longo prazo? O que essa pandemia tem mostrado sobre o modelo civilizatório que criamos no planeta, que é essa globalização da economia e do capital sem a globalização da gestão política? Mostrou a dificuldade que é você não poder produzir o que precisa no seu país, por exemplo. Esse é o objetivo. Nós estamos mostrando como a ciência responde. A ciência não tem bairrismo, regionalismo, isso não existe. Talvez a ciência possa dar uma lição aos economistas e políticos do pós-pandemia sobre como a humanidade deveria funcionar.

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