Cúpula da Saúde pressiona até Abin a
maquiar dados
Valor Econômico
Militares que ocupam postos chave no Ministério da Saúde vêm
pressionando técnicos da pasta a maquiar dados relativos a casos de covid-19 e
mortos pela doença no país.
A pressão atinge também a Agência Brasileira de Inteligência (Abin), que
produz relatórios usados para consumo interno do Centro de Coordenação de
Operações (CCOP) da Casa Civil - grupo que atua no Palácio do Planalto e reúne
funcionários de vários ministérios.
Essa maquiagem começou a tomar forma na sexta-feira, quando os dados,
divulgados em horário cada vez mais tardio, também sofreram mudanças na
apresentação das cifras diárias de casos e óbitos. O horário da divulgação, às
21h30, após o fim do “Jornal Nacional”, foi uma ordem do presidente Jair
Bolsonaro, disseram fontes ao Valor. A maquiagem deve sofrer mais retoques
nesta semana, caso seja adotado um novo critério para exibição do número diário
de mortes, sugerido por auxiliares do ministro Eduardo Pazuello - e que deve
resultar em um número bem menor do que os atuais.
O novo método, dizem técnicos ouvidos pelo Valor sob condição de
anonimato, tem como referência a sugestão feita pelo empresário Luciano Hang,
investigado pela Polícia Federal no inquérito das Fake News, em um vídeo
encaminhado a eles pela cúpula da Saúde em um grupo de WhatsApp. Hoje, os
números exibidos contêm as mortes registradas no mesmo dia e os óbitos
confirmados naquela data, mas que ocorreram anteriormente e estavam sob
investigação. Funcionários relatam que o coronel Elcio Franco Filho,
secretário-executivo da pasta, tem insistido para que passem a ser divulgadas
apenas as mortes ocorridas e confirmadas no mesmo dia.
Um exemplo de como essa ordem ajuda a maquiar os dados: em 4 de junho, a
pasta divulgou o número recorde 1.473 mortes. Esse dado se refere à soma das
mortes ocorridas naquela quinta-feira e aos óbitos por covid-19 confirmados
naquele mesmo dia, mas que estavam sob investigação. O mesmo boletim trazia o
número de mortes com data de ocorrência nos últimos três dias era de 366 - o
restante era relativo a casos que estavam em investigação. É esse número que se
pretende adotar daqui para a frente. Na última sexta, o Ministério da Saúde
passou a publicar somente os registros de óbitos e casos confirmados a cada
dia, sem o dado acumulado.
A mudança gerou críticas de autoridades como o ministro Gilmar Mendes,
do Supremo Tribunal Federal (STF), entidades médicas e acadêmicos, que
apontaram falta de transparência.
Para técnicos, as mudanças deixam os gestores da área sem capacidade de
interpretar os dados ao longo do tempo e sem referência da curva da epidemia no
país. Somada isso, a omissão dos dados acumulados impede o país de ter uma
ideia precisa de quantas pessoas morreram pelo coronavírus. “A epidemiologia
básica é justamente olhar todos esses dados em conjunto. As apresentações
preparadas para o público continham todos esses dados”, diz um servidor sob a
condição de anonimato. O coronel Franco e seu adjunto, Jorge Kormann, vêm nos
últimos dias bombardeando os técnicos da pasta no grupo de WhatsApp com mensagens,
insistindo na conveniência da mudança do método de contagem. O Valor teve
acesso a algumas mensagens cuja falta de rigor científico choca os técnicos da
pasta da Saúde. Em uma delas, Kormann encaminhou vídeo publicado pelo
empresário Luciano Hang. “O vídeo acima é para refletirmos sobre o mapeamento
de óbitos diários”, disse Kormann ao introduzir o material aos colegas. No
vídeo, Hang promete fazer uma live com o deputado federal Osmar Terra (MDB-RS)
para “mostrar o que está por trás dos números” recorde de mortes pela covid-19.
Hang exibe, então, uma gráfico com dados de cartórios mostrando uma curva de
óbito sem trajetória descendente. Assim, defende que o governo passe a publicar
apenas as mortes confirmadas no mesmo dia. Segundo funcionários da Saúde, no
entanto, a curva mostrada por Hang é descendente “porque os dados de mortes
recentes são muito preliminares”.
Outro pedido de Elcio Franco no grupo foi para que a Abin “verifique a
possibilidade de não trabalhar com dados acumulados”.
Os números da Abin são usados para consumo interno, explicam as fontes,
inclusive para que o próprio presidente tome decisões a respeito da pandemia.
Ou seja, sem essas informações, Bolsonaro adotará políticas sem nenhum
embasamento em dados científicos. Além disso, um boletim epidemiológico semanal
elaborado pelos técnicos foi “censurado” pela cúpula do ministério. O material
mostra em 95 páginas informações da doença e a tendência por Estado. Mas, como
contém dados cumulativos, o material que seria divulgado na semana que vem foi
embargado pelo coronel.
O Gabinete de Segurança Institucional (GSI), responsável pela Abin, não
se pronunciou. Já o Ministério da Saúde disse em nota que “os debates ocorridos
ao longo da semana tiveram o objetivo de qualificar a disponibilidade das
informações e retratar de forma mais adequada os diversos cenários em
território nacional”. Em nota à imprensa, após a consulta do Valor, a pasta
disse que “o uso da data de ocorrência (e não da data de registro) auxiliará a
se ter um panorama mais realista do que ocorre em nível nacional e favorecerá a
predição, criando condições para a adoção de medidas mais adequadas para o
enfrentamento da COVID-19, nos âmbitos regional e nacional”. A polêmica sobre a
divulgação das mortes pela covid-19 é forte dentro do governo e ontem derrubou
um secretário antes mesmo de ele tomar posse. O empresário Carlos Wizard
Martins desistiu de assumir a Secretaria de Ciência, Tecnologia e Insumos
Estratégicos da Saúde e anunciou que deixou de ser conselheiro do ministério após
haver sugerido uma recontagem dos mortos no Brasil. Em nota, ele se desculpou
pela declaração. “Peço desculpas por qualquer ato ou declaração de minha
autoria que tenha sido interpretada como desrespeito aos familiares das vítimas
da covid-19 ou profissionais de saúde que assumiram a nobre missão de salvar
vidas”, disse. Ontem, a pasta confirmou o registro de 1.382 óbitos pelo
coronavírus em 24 horas. O total de mortos chegou a 37.312 pessoas. E o de
pessoas já infectadas, a 685.427.
No Brasil, a pandemia tem caminho peculiar https://bit.ly/30nOOnV
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