21 setembro 2022

Raízes das milícias

Milícias, produto das ruínas do capitalismo

Nos escombros do país elas fundam seus pilares de economia extrativista. Não são Estado paralelo, mas propagam-se por ele, na promiscuidade entre polícias e grupos paramilitares. Para enfrentá-las, há saídas: criar serviços públicos de qualidade
Daniel Hirata em entrevista a João Vitor Santos, no IHU Online
– Outras palavras


Em tempos de campanha eleitoral, e até antes, ouve-se muito que, dada a criminalidade e violência no Brasil, “vivemos num Estado miliciano”. Mas o que isso significa? Para o professor Daniel Hirata, não se deve seguir com uma ideia de que as milícias, enquanto organização criminal, estão constituindo um outro tipo de Estado. “Não é outro projeto de Estado; ele se faz em conjunto com o Estado”, observa. Ou seja, significa pensar que a milícia precisa dessa estrutura estatal como conhecemos para se constituir e sobreviver.

Na entrevista a seguir, concedida por e-mail ao Instituto Humanitas Unisinos – IHU, Hirata recorda que “o antigo caldo de matadores, bicheiros e policiais atuando sob as formas de uma economia extrativista e de um projeto autoritário de poder social e estatal são os elementos fundadores das milícias”. E constata: “esses grupos atuam nos escombros da economia e do Estado brasileiro, através de uma ética relacionada ao elogio do uso da força não pactuada para a resolução de conflitos e atuam violentamente sobre territórios e populações”.

Para ele, também é equivocado pensar que milícia e tráfico de drogas galgam espaços via conflitos diretos entre si. “As milícias não crescem no enfrentamento das facções do tráfico de drogas, mas ampliando o controle territorial armado sobre novas áreas e essa vetorização do controle territorial, via expansão das milícias, nos parece ser responsável por uma mudança de conjunto no fenômeno do controle territorial armado”, explica.

Assim, podemos compreender que, enquanto existir tráfico, existirá milícia, pois o primeiro grupo vai sempre oferecer alternativa de proteção. Mas, e o Estado? Ao que parece, vai se mantendo em ruínas, nas quais a milícia encontra espaço para fundar seus pilares. “Nosso tempo presente aponta para um futuro e se conecta com uma série de processos contemporâneos de destruição das formas de proteção social, de produção da competição como forma de produção de subjetividades e da ascensão da extrema-direita radicalizada”, acrescenta Hirata.

Como saída, o professor observa como fundamental “fazer um ajuste de contas com o nosso passado e encarar seriamente essas ruínas de capitalismo e esses frangalhos de democracia liberal”. Ele reconhece ser um processo difícil, mas que deve ser encarado. Uma forma, segundo Hirata, é a regulação dos mercados em que atuam as milícias. “Isto porque o modelo predatório de negócios dos grupos armados se assenta sob a desregulamentação dos mercados em que são atuantes”, explica. Numa outra frente, é preciso um “enfrentamento das conexões que permitem politicamente essa promiscuidade entre legalidade e ilegalidade”. “Trata-se de atuar fortemente no rompimento das ligações perigosas para salvaguardar as instituições públicas”, detalha.

Daniel Hirata é professor adjunto do Departamento de Sociologia e Metodologia em Ciências Sociais da Universidade Federal Fluminense – UFF, do Programa de Pós-Graduação em Sociologia (PPGS/UFF) e do Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Direito (PPGSD-UFF). É coordenador do Núcleo de Estudos dos Novos Ilegalismos (GENI-UFF). Possui doutorado em Sociologia pela Universidade de São Paulo – USP, com estágio doutoral na Université de Toulouse-le Mirail e na École des Hautes Etudes en Sciences Sociales, ambas na França. Também é mestre em sociologia e graduado em Ciências Sociais pela USP.

Confira a entrevista

Como analisas os constantes ataques a tudo aquilo que compreendemos como as bases para um regime democrático?

Como diria Millôr Fernandes “O Brasil tem um imenso passado pela frente“, passado este que diz respeito aos legados não resolvidos da escravidão, do racismo, da intolerância, do desprezo pelos pobres, do patriarcado, de um Estado violentamente autoritário…

Ao mesmo tempo, nosso tempo presente aponta para um futuro e se conecta com uma série de processos contemporâneos de destruição das formas de proteção social, de produção da competição como forma de produção de subjetividades e da ascensão da extrema direita radicalizada. Então, dessa forma, me parece que temos que fazer um ajuste de contas com o nosso passado e encarar seriamente essas ruínas de capitalismo e esses frangalhos de democracia liberal. É difícil.

IHU – Por que a revolução social que vivemos na primeira década dos anos 2000 se converteu na aridez dessa conjuntura que temos vivido?

De fato eu não sei se o que vivemos nos anos 2000 poderiam ser chamados de uma revolução, me parece que foi mais um reformismo do possível e um reformismo fraco. Mas em um país como o Brasil isso já é muito. É o suficiente para o levante de uma parcela das elites políticas e econômicas contra esses importantes e pequenos avanços.

Também é importante dizer que se trata do resultado de uma insatisfação de parte da população que se sentiu desprezada e que se volta contra o Estado nas diversas formas de ressentimento possíveis. Esta é uma aliança de grupos sociais que produziu uma espécie de contra-ataque à democracia que foi canalizado pelo bolsonarismo.

Quais as transformações que vida na periferia foi submetida nesses últimos 20 anos? Que relações podemos estabelecer entre essas transformações e o crime organizado?

Nesses 20 anos, o crime mudou muito. Por um lado, temos a ampliação do Primeiro Comando da Capital – PCC como grupo que se internacionalizou enormemente. Por outro lado, as milícias, que vêm crescendo exponencialmente. São fenômenos diferentes, que na maior parte das vezes são colocados em uma mesma categoria guarda-chuva que mais encobre que explica processos distintos.

O que eles têm em comum é que galgaram posições econômicas importantes e se impuseram sobre seus rivais, mas as interfaces políticas me parecem diferentes, ou seja, as relações com o Estado. As milícias são muito mais próximas de agentes estatais, o que não quer dizer que a cobertura de certos agentes estatais não seja fundamental para os negócios do PCC.

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Me parece, também, que existem diferenças nas moralidades em que se assentam tais grupos e isso seria muito importante de se avançar no entendimento. As milícias se assentam em uma espécie de “amor a farda”, o PCC se volta contra o que chama “o sistema”, ambos se opõem à “moralidade cívica” evidentemente, mas as maneiras de exercícios de construção de uma ordem social criminal se assentam em bases que são distintas. Essas diferenças são importantes para entender como isto se conecta com as transformações mais recentes da sociedade brasileira dos últimos 20 anos.

Levando em conta a ascensão das milícias nos últimos anos, podemos considerar que representa a falência do Estado nas periferias ou seria mais um outro projeto de Estado?

Não é outro projeto de Estado, se faz em conjunto com o Estado. Para dialogar com Gabriel Feltran, são os “jagunços” e a expansão das milícias o “grande levante dos jagunços”. O que isto quer dizer? Eram pessoas que já estavam presentes no mundo criminal, que já sabiam como funcionavam os esquemas políticos e econômicos nas penumbras entre legalidade/ilegalidade, já tinham armas e em certo momento se perguntam se não poderiam eles mesmos tomar o controle político e econômico dos lugares em que estavam.

O antigo caldo de matadores, bicheiros e policiais atuando sob as formas de uma economia extrativista e de um projeto autoritário de poder social e estatal são os elementos fundadores das milícias. Em resumo: esses grupos atuam nos escombros da economia e do Estado brasileiro, através de uma ética relacionada ao elogio do uso da força não pactuada para a resolução de conflitos e atuam violentamente sobre territórios e populações – chamamos isto da “ética miliciana e o espírito do capitalismo extrativista” em artigo recente.

Recentemente, em artigo publicado em O Estado de São Paulo, Gabriel Feltran coloca a polícia política como central na discussão da criminalidade no Brasil de hoje. Como o senhor compreende essa ideia de polícia política? De que forma essa lógica se lastreia em parte da população e como essa polícia é vista desde a periferia?

O controle democrático da atividade policial tem que ser operante no Estado de direito. O uso da força só é ilimitado em regimes autoritários, nos quais a vida está à disposição da autoridade, já em democracias o uso da força se restringe aos limites estreitos da legalidade. Mas o que se viu nos últimos anos foi o inverso: aumento da violência estatal, com as mortes por intervenção de agentes de estado assumindo um protagonismo inclusive quando pensamos no conjunto dos homicídios, ou seja, o Estado se tornando agente propulsor dos homicídios.

E isso se fez na mesma medida em que as forças policiais foram se tornando cada vez mais autônomas. No Rio de Janeiro já nem temos mais secretaria de segurança pública. Então, o nível de autonomização administrativo, político e financeiro é muito grande. E, desta forma, não é possível que a polícia se transforme em algo que seja confiável aos olhos da população, que se relaciona muitas vezes de forma violenta e corrupta com as forças policiais.

Sem confiança nas instituições não há possibilidade de um bom relacionamento com a sociedade, mas para isso é preciso que se preste contas sobre o que se faz, que a transparência seja a regra, que seja possível aquilo tudo que as forças da ordem mais são resistentes e se transformar, em uma instituição verdadeiramente republicana. Quando das poucas e valiosas tentativas de construção do controle democrático da atividade policial, o que vemos é sabotagem ou chantagem, colocando os políticos contra a parede. E isso, realmente, se assenta em uma ideia que a legalidade é um limite à atividade policial. Por isso é necessário coragem e contundência, não há outro caminho.

O combate à violência e a criminalidade no Brasil de hoje passa essencialmente pelo quê?

O combate à criminalidade passa por dois caminhos: por um lado, a regulação dos mercados em que atuam, ou seja, mediação pública de mercados. Por vezes, até temos presença estatal, mas não efetiva mediação pública. Isto porque o modelo predatório de negócios dos grupos armados se assenta sob a desregulamentação dos mercados em que são atuantes.

Por outro lado, é importante o enfrentamento das conexões que permitem politicamente essa promiscuidade entre legalidade e ilegalidade. Michel Misse chama de mercadorias políticas essas ligações perigosas que fazem dos mercados de proteção/extorsão entes de regulação extra-legal desses mercados. Deste ponto de vista, aqui trata-se de atuar fortemente no rompimento das ligações perigosas para salvaguardar as instituições públicas.

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Atuando contra o modelo de negócios e o modelo político, temos frentes eficazes e muito menos letais que o enfrentamento bélico, que são altamente letais, sobretudo contra a população pobre, negra e residente em favelas e muito pouco eficazes para o enfrentamento do crime.

Recentemente, o senhor estudou como as ações judiciais impactaram na preservação de vidas nas favelas. O que mais lhe surpreendeu nesse estudo? Quais os limites de se ter essa preservação de vidas apenas atrelada a medidas do Judiciário?

As ações judiciais têm se mostrado centrais na mesma medida em que a destruição dos canais de mediação política foi sendo esvaziados ou destruídos. Desta forma, a ADPF das favelas [Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental 635, conhecida como a “ADPF das Favelas”], que é herdeira da Ação Civil Pública – ACP da Maré do caso Nova Brasília e muitos outros têm se mostrado uma alternativa para forçar a atuação mais cidadã e de preservação das vidas negras e faveladas.

Além de conseguirem algumas conquistas importantes, mantém nesses tempos autoritários coalizões de atuação na questão dos direitos humanos e da democracia. De fato, historicamente foi antes como resposta às pressões da sociedade civil que das iniciativas estatais que avançamos no Brasil no enfrentamento dessas questões tão delicadas.

Vejamos o caso da ADPF das favelas. Ela se formou como uma resposta aos efeitos letais desse aumento da autonomia e da arbitrariedade das polícias fluminenses, em 2019 se formou uma grande coalizão ao redor da ADPF das Favelas e conseguiu, por meio de decisão liminar do Supremo Tribunal Federal em 2020, restringir das operações policiais. Sem que houvesse aumento dos crimes contra a vida e contra o patrimônio – na verdade homicídios, roubos e latrocínios diminuíram durante esse período – a ADPF logrou reduzir em 75% a letalidade policial durante os quatro meses que a decisão foi relativamente respeitada.

Contudo, logo no início de 2021, quando as afrontas à decisão do STF se multiplicavam nas recorrentes operações policiais, ocorreu, no dia 6 de maio, no Jacarezinho, a operação com a maior quantidade de mortos da história do Rio de Janeiro, com 29 pessoas assassinadas.

Logo após a operação, que foi batizada de “exceptis” em referência à decisão do STF, as autoridades policiais fizeram uma coletiva de imprensa repleta de ironias ou críticas abertas ao “ativismo judicial” do STF. Nas entrelinhas do discurso, a polícia civil declarava solenemente que não aceitaria a decisão da mais alta corte do poder judiciário brasileiro. Neste ano de 2022, o STF determinou ao governo do Estado a realização de um plano de redução da letalidade policial a ser supervisionado pela sociedade civil, sendo este o único fio de enfrentamento desta delicada situação, que coloca em xeque as instituições democráticas brasileiras.

O que dados do mapa dos grupos armados do Rio de Janeiro, levantamento o qual o senhor trabalhou, revela o atual contexto do crime organizado no país?

Há mais de quatro décadas, amplos espaços da Região Metropolitana do Rio de Janeiro se encontram sob o domínio de grupos armados, que submetem os moradores a uma série de arbitrariedades e os expõe ao confronto armado, causado por disputas com grupos rivais ou por operações policiais. Resolver esse problema depende de informações qualificadas, que ajudem a entender suas causas e readaptações a cada nova política de enfrentamento a elas.

Várias iniciativas da sociedade civil e algumas do poder público vêm tentando preencher essa lacuna das informações, para poder enxergar o problema em seu nível sistemático e não apenas o problema de um ou outro bairro. Mas faltava um elemento essencial, capaz de ajudar a dar forma e auxiliar na compreensão de todos os outros – o mapa que mostre onde esses grupos estão em cada momento histórico e para onde crescem. Por isso o GENI/UFF e o Fogo Cruzado ne uniram para capitanear esse projeto de cartografia histórica dos grupos armados.

Quando o projeto ficou pronto, alguns dados puderam ser produzidos: percebemos que a área da Região Metropolitana do RJ controlada por grupos armados cresceu 131%, porque em 2008, 8,7% do território era controlado por esses grupos. Atualmente, 20,0% da região metropolitana é controlada por algum grupo armado. As áreas dominadas por milícias cresceram vertiginosamente, de tal modo que, das áreas dominadas por algum grupo armado no Grande Rio no último triênio 2019-2021, metade está nas mãos das milícias (49,9).

E esta expansão territorial das milícias não ocorreu a partir da “conquista” de áreas antes dominadas pelo tráfico, mas sim pela ampliação das áreas anteriormente não controladas por nenhum grupo armado. Além disso, milícias e Tráfico apresentam tendências de ocupação do espaço urbano – as milícias atuam mais no “asfalto”, ao passo que as facções mais em “favela”. Assim, a justificativa que acompanhou as milícias desde as suas origens cai por terra. As milícias não crescem no enfrentamento das facções do tráfico de drogas, mas sim ampliando o controle territorial armado sobre novas áreas e essa vetorização do controle territorial por meio da expansão das milícias nos parece ser responsável por uma mudança de conjunto no fenômeno do controle territorial armado.

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