26 novembro 2025

Uma crônica de Abraham Sicsu

Abriram a Cápsula do Tempo
Abraham B Sicsu      

Gilberto Freyre definiu um conceito, Tempo Tríbio. Acho que nunca o entendi direito, mas, sendo pesquisador de uma instituição que cultuava a memória do autor, sempre o repetia com ar de um intelectual empolado, pseudo, claro. Fazia sucesso em alguns espaços e passava bem rápido para não ser questionado.

O significado passa por uma interpretação em que a memória, o tempo passado, condiciona o concreto do presente, que permite ver e estruturar o novo, o tempo futuro. É interessante como essa visão pode ser atual, condicionando aquilo que vivemos a cada instante. Os três tempos presentes em um só, o presente.

Pois é, quem faz uma cápsula do tempo tem essa perspectiva na vida, e o velho Naasson teve. Fechou a cápsula no centenário do Diário de Pernambuco e foi aberta agora em 2025, nos duzentos anos.

Curiosidade geral, um auditório para cinquenta pessoas com mais de duzentos. Pesquisadores, autoridades, jornalistas, público em geral, todos interessados no que estaria naquele recipiente atrás da redoma de vidro. Apinhados, mas sem muito reclamar, o clima era de busca ao desconhecido.

Discursos, fotos, autoridades se revezando, representantes da família do falecido jornalista, tudo como manda o protocolo. Coordenado por uma restauradora meticulosa e experiente. Vai começar o espetáculo.

Observação preliminar. O tempo muda objetos, deteriora. Papeis se ressecam. As fibras ficam quebradiças. Será necessário um trabalho de restauro meticuloso nos próximos meses, talvez ano, para evitar a perda de informações. Mas, muito já pode ser revelado.

Cortam-se os arames das laterais da caixa para não danificar o conteúdo, auxiliares zelosos se posicionam para evitar interferências indébitas. Começam a sair as relíquias.

Uma espátula para abrir uma carta. Há explicação, veremos ao final. Uma caneta comemorativa do centenário. Edições do jornal daquela época, 1925, ressaltando a importância da efeméride. Edição ilustrativa que foi produzida para relembrar a Confederação do Equador, o orgulho da alma guerreira e libertária pernambucana sendo preservado. Fotografias do Diário, seu mobiliário, sua arquitetura e sua história. Tudo isso, acredito, previsível, esperado em uma caixa que pretendia fazer loas a um jornal que tinha um século.

Para a família do velho autodidata, idealizador da caixa, uma surpresa agradável. Fotos dos filhos e parentes. Em ambientes que alguns de nós conhecemos. Pessoas que estiveram entre nós, faz bem pouco tempo. Com as quais convivemos, com as quais muito aprendemos. Afetos que nos marcam até hoje.

Vem mais um documento. Um enigma que pode revelar coisas ainda não conhecidas. Uma carta de próprio punho. O repórter deixando a história registrada. A espátula útil para abri-la com cuidado.

Apenas a primeira página pode ser acessada na ocasião. Letra bem desenhada e legível. Pode ser reveladora. Parece dar a entender que é um registro da trajetória dele, o autor, no jornal. Um redator que veio de Pombos e fez carreira no periódico.

Lembra os primeiros passos, em Recife, da Great Western of Brazil Railway e da Livraria Francesa. Onde se apegou à leitura dos clássicos da literatura universal. De Dumas a Flaubert e Tolstói, de Machado de Assis a Castro Alves e José de Alencar. Leitor compulsivo. Paramos por aí. Esperemos o restauro. Pode haver detalhes interessantíssimos que, talvez, serão revelados.

A abertura foi um sucesso. Mostrou o quão importante para uma sociedade é o resgate de sua memória. Também para os familiares, de como no tempo presente descendentes que moram distantes se solidarizam e aproveitam um sentimento de união, não deixam de se orgulhar de suas origens.

Um sentimento se generaliza, como será o tricentenário? O que podemos esperar? O que trará para as próximas gerações? Como planejar um tempo futuro auspicioso?

Não o que será, tenho certeza de que não temos esse dom de clarividência, mas o que gostaríamos que fosse e nos norteasse na busca de uma coletividade fraterna.

Alguém fará outra cápsula para ser aberta daqui a cinquenta ou cem anos? Se ninguém se candidatar, acho que vou fazer essa postulação.

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Leia também: Abraham Sicsu aborda a eutanásia https://lucianosiqueira.blogspot.com/2025/10/abraham-sicsu-opina_21.html

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