Abriram a Cápsula do Tempo
Abraham B Sicsu
Gilberto Freyre definiu um conceito, Tempo Tríbio. Acho que nunca o entendi direito, mas, sendo pesquisador de uma instituição que cultuava a memória do autor, sempre o repetia com ar de um intelectual empolado, pseudo, claro. Fazia sucesso em alguns espaços e passava bem rápido para não ser questionado.
O significado passa por uma interpretação em que a
memória, o tempo passado, condiciona o concreto do presente, que permite ver e
estruturar o novo, o tempo futuro. É interessante como essa visão pode ser atual,
condicionando aquilo que vivemos a cada instante. Os três tempos presentes em
um só, o presente.
Pois é, quem faz uma cápsula do tempo tem essa
perspectiva na vida, e o velho Naasson teve. Fechou a cápsula no centenário do
Diário de Pernambuco e foi aberta agora em 2025, nos duzentos anos.
Curiosidade geral, um auditório para cinquenta pessoas
com mais de duzentos. Pesquisadores, autoridades, jornalistas, público em
geral, todos interessados no que estaria naquele recipiente atrás da redoma de
vidro. Apinhados, mas sem muito reclamar, o clima era de busca ao desconhecido.
Discursos, fotos, autoridades se revezando,
representantes da família do falecido jornalista, tudo como manda o protocolo.
Coordenado por uma restauradora meticulosa e experiente. Vai começar o
espetáculo.
Observação preliminar. O tempo muda objetos,
deteriora. Papeis se ressecam. As fibras ficam quebradiças. Será necessário um
trabalho de restauro meticuloso nos próximos meses, talvez ano, para evitar a
perda de informações. Mas, muito já pode ser revelado.
Cortam-se os arames das laterais da caixa para não
danificar o conteúdo, auxiliares zelosos se posicionam para evitar
interferências indébitas. Começam a sair as relíquias.
Uma espátula para abrir uma carta. Há explicação,
veremos ao final. Uma caneta comemorativa do centenário. Edições do jornal
daquela época, 1925, ressaltando a importância da efeméride. Edição ilustrativa
que foi produzida para relembrar a Confederação do Equador, o orgulho da alma
guerreira e libertária pernambucana sendo preservado. Fotografias do Diário,
seu mobiliário, sua arquitetura e sua história. Tudo isso, acredito,
previsível, esperado em uma caixa que pretendia fazer loas a um jornal que
tinha um século.
Para a família do velho autodidata, idealizador da
caixa, uma surpresa agradável. Fotos dos filhos e parentes. Em ambientes que
alguns de nós conhecemos. Pessoas que estiveram entre nós, faz bem pouco tempo.
Com as quais convivemos, com as quais muito aprendemos. Afetos que nos marcam
até hoje.
Vem mais um documento. Um enigma que pode revelar
coisas ainda não conhecidas. Uma carta de próprio punho. O repórter deixando a
história registrada. A espátula útil para abri-la com cuidado.
Apenas a primeira página pode ser acessada na ocasião.
Letra bem desenhada e legível. Pode ser reveladora. Parece dar a entender que é
um registro da trajetória dele, o autor, no jornal. Um redator que veio de
Pombos e fez carreira no periódico.
Lembra os primeiros passos, em Recife, da Great
Western of Brazil Railway e da Livraria Francesa. Onde se apegou à leitura dos
clássicos da literatura universal. De Dumas a Flaubert e Tolstói, de Machado de
Assis a Castro Alves e José de Alencar. Leitor compulsivo. Paramos por aí.
Esperemos o restauro. Pode haver detalhes interessantíssimos que, talvez, serão
revelados.
A abertura foi um sucesso. Mostrou o quão importante
para uma sociedade é o resgate de sua memória. Também para os familiares, de
como no tempo presente descendentes que moram distantes se solidarizam e
aproveitam um sentimento de união, não deixam de se orgulhar de suas origens.
Um sentimento se generaliza, como será o
tricentenário? O que podemos esperar? O que trará para as próximas gerações?
Como planejar um tempo futuro auspicioso?
Não o que será, tenho certeza de que não temos esse
dom de clarividência, mas o que gostaríamos que fosse e nos norteasse na busca
de uma coletividade fraterna.
Alguém fará outra cápsula para ser aberta daqui a cinquenta
ou cem anos? Se ninguém se candidatar, acho que vou fazer essa postulação.
[Se comentar, identifique-se]
Leia também: Abraham Sicsu aborda a eutanásia https://lucianosiqueira.blogspot.com/2025/10/abraham-sicsu-opina_21.html

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